A coragem nossa de cada dia – parte II

 downloadEm virtude dos comentários interessantíssimos que recebi sobre o meu último texto, A coragem nossa de cada dia, resolvi escrever novamente sobre este tema, que me parece central à vida humana.

  Vou sistematizar os comentários que recebi para depois propor um diálogo com eles, a partir da perspectiva que já é incorporada no meu modo de interpretar o mundo e a minha presença nele, ou seja, a psicanálise.

  Comentando sobre o conteúdo do texto, algumas pessoas disseram o seguinte:

Que, diante de uma conquista, costumam se sentir muito culpadas e que este sentimento incômodo surge quando elas se dão conta de que há muitas pessoas que nunca terão aquilo que elas têm. Por exemplo: se a pessoa se sente afortunada por morar em uma casa confortável, fica imaginando quantas pessoas não têm casa para morar, são pobres e sem recursos materiais. Ou, se a pessoa reconhece a sua inteligência e competência profissional, sente-se culpada por imaginar quantas pessoas não têm condição, sequer, de compreender um texto lido.

Esta questão levantada pelas pessoas, conforme observo em minha clínica, são muito recorrentes quando se trata de sustentar internamente o sucesso ou a conquista obtida na vida. Por isso, achei que valia a pena aprofundá-las aqui.

Sobre a questão colocada, parece-me que este é um sentimento comum às pessoas que nasceram com mais recursos internos que outras. Vou explicar melhor o que quero dizer com isso.

Mantendo uma visão bem corajosa sobre a vida, notaremos que os seres humanos são muito diferentes entre si. Isso parece uma coisa óbvia mais não é. Assim como do ponto de vista físico somos diferentes, do ponto de vista mental também. Assim diz Nietzsche sobre isso:

De onde surgiu a lógica na cabeça humana? Com certeza foi da não lógica, cujo reino na origem há de ter sido descomunal. A tendência preponderante a tratar o semelhante como igual (uma tendência ilógica, pois não há nada em si igual) foi a primeira a criar todos os fundamentos em que se assenta a lógica

 Se vocês observarem bem a realidade, verão que há seres humanos que são mais competentes e se saem melhor quando o assunto é amar a vida e a si mesmos. Isso se concretiza, obviamente, em maior sucesso e felicidade. Quem mais nos ajuda a compreender esta questão é Melanie Klein.

Esta psicanalista considerou que cada ser humano nasce (ou seja, isso é inato!) com potencial para amar e para odiar. Dito em termos mais simplistas: cada um de nós nasce com potencial para investir na vida, para construir e também para destruir. Isso faz parte da nossa condição instintual. Esta questão pode ser bem visualizada em bebês.

 Há bebês que, dotados de uma alta capacidade de amar a vida e investir nela, toleram melhor as frustrações da mãe (ter que esperar por ela, por exemplo, na hora da mamada) e rapidamente a perdoam, pegando mais rapidamente o seio e mamando com satisfação. Outros demoram mais para perdoar as falhas da mãe e, às vezes, tomados por um intenso ódio pela frustração sofrida, fecham a boquinha ou cospem o leite. Neste caso, em que dizemos que constitucionalmente a criança nasceu com maior intolerância à frustração, ele deverá ter tido a sorte de ter uma mãe mais paciente e compreensiva. Pois, se a mãe não suporta a expressão de ódio do bebê e devolve “na mesma moeda”, o ódio da criança se intensifica e cresce; o que torna seu investimento na vida e sua capacidade de amar paralisada pelos sentimentos de frustração e ódio.

Vou dar outro exemplo acerca desta condição de amar a vida para clarear o que quero dizer.

Reparem na casa das pessoas. A casa é expressão máxima do que carregamos dentro de nós! Podemos ir à casa de uma pessoa muito pobre e sem recursos materiais, mas riquíssima do ponto de vista da capacidade de amar a vida e a si mesma. Essa pessoa, por mais que sua casa seja pequena e humilde, manterá sua moradia (reflexo de si mesma) limpa e asseada. Suas roupas serão bem lavadas e cuidadas, mesmo que para isso ela tenha que fazer o maior esforço para conseguir água em um lugar distante. Pode até ser que haja uma florzinha em cima da mesa, que ela conseguiu pegar em um jardim qualquer. Ela será capaz de enxergar beleza nas pequenas coisas da vida. Isso não tem a ver com riqueza ou pobreza material! Isso é condição interna de amar a vida e investir nela. Essa pessoa terá orgulho de si mesma e de sua condição de trabalhar honestamente, de ganhar sua vida e de pagar suas contas. Não importa que seu trabalho não tenha tanto status, do ponto de vista social. Ela sente orgulho por ser quem ela é. Em termos psicanalíticos, dizemos que esta pessoa é dotada de alta condição inata de amar e ser grata pela vida.

Outras tantas que vivem na pobreza não tiveram a mesma sorte de nascer como esta pessoa hipotética e de contar com vínculos primordiais que pudessem ensiná-las a amar e respeitar a vida. Elas não ligarão de viver na sujeira, de fazer trabalhos ilícitos ou de depender integralmente de bolsas governamentais. Falta a estas pessoas o sentimento básico de orgulho e de amor à vida e àquilo que elas são.

Na minha perspectiva, quando se discute este tipo de questão social, os sociólogos e antropólogos acabam por focalizar sua atenção somente no aspecto externo, no concreto, que, obviamente, também é importante. Mas, com isso, desconsideram que o social e o contextual só faz sentido em relação a algo que é subjetivo e, portanto, interno a cada um de nós. Se não fosse assim, porque, afinal, dois irmãos que vivenciaram mais ou menos o mesmo contexto familiar, social e cultural desenvolvem-se de formas tão diferentes? Porque dois irmãos moradores da favela se comportam de forma tão diferenciada com relação ao tráfico – um se envolve com a criminalidade, enquanto o outro luta para se desenvolver de forma honesta e íntegra? Isso é compreendido pelo que carregamos, desde muito cedo, internamente, ou seja, o que nos constitui enquanto subjetividades; nosso sentimento de riqueza ou de pobreza que determinará profundamente o modo como vivemos a nossa vida.

 Pois, uma pessoa dotada de um mundo interno em que predominam sentimentos de ódio, revolta e desrespeito por si mesma, não vai poder usufruir daquilo que lhe é dado. Vai sujar e estragar as roupas que ganha, vai gastar de forma errônea o dinheiro recebido. Enfim, não vai conseguir se desenvolver, algo que, como estou mostrando, tem muito mais a ver com questões internas do que externas. É por isso que na psicanálise somos contrários à ideia de um tratamento gratuito. Porque uma pessoa para se desenvolver, necessita sentir que são os seus recursos internos que estão lhe proporcionando o crescimento (o terapeuta, neste caso, é um facilitador). Obviamente, como nos ensinou Melanie Klein, uma criança aprende a fortalecer seus sentimentos amorosos na vida por meio do intenso e árduo trabalho feito por seus pais, sobretudo por sua mãe. Mas, para que a mãe possa fazer este trabalho de maternagem, ela também necessita manter dentro de si uma visão respeitosa e amorosa sobre a vida; algo que vai sendo transmitido e sendo ensinado de geração a geração.

É neste sentido que a educação deveria ser pensada: educação para ajudar as pessoas a desenvolverem recursos de vida, de fortalecimento no amor à vida e de respeito à verdade! O problema é que se costuma pensar educação somente do ponto de vista formal e externo à subjetividade do indivíduo. Por exemplo: não basta ensinar às pessoas educação financeira. É preciso discutir a fundo questões como capacidade de diferenciar desejo e realidade, respeito à verdade e à realidade, honestidade e desonestidade, etc.

Mas, retomando a questão e, levando-se em conta que somos todos diferentes em nossas capacidades de amarmos a vida e sermos gratos por ela, como podemos pensar o comentário feito pelas pessoas que me escreveram?

Ou seja, como podemos elaborar este terrível sentimento de culpa por percebermos que há inúmeras pessoas que não tiveram a mesma competência e sorte, de terem nascido com alta capacidade de amar a vida, com inteligência e terem sido criados por pais que, a despeito de suas falhas, terem lhe dado o essencial? Em suma, como podemos nos dar o direito de sermos felizes, bem sucedidos e satisfeitos em um mundo tão cheio de misérias e pobrezas (interna e externa)?

Encontrei uma saída para isso em Nietzsche.

Tenho aprendido com Nietzsche que nós não escolhemos quem nós somos. É uma ilusão acharmos que somos competentes, felizes e inteligentes porque escolhemos ser assim. Nós não escolhemos!

Quando nascemos, não pedimos a alguém no céu que queríamos ser assim ou assado. Aliás, nem temos condição nem de escolher se queremos viver ou não. Por isso, Guimarães dizia que tinha mais medo de nascimentos do que de mortes! Nós nascemos e pronto. Sem escolha. Afinal, se pudéssemos escolher, obviamente escolheríamos ser felizes, capazes de amar, inteligentes, etc. Mas, não é assim que acontece.

Cada um é como é: mais ou menos limitado em termos de inteligência, mais ou menos corajoso, mais ou menos invejoso, mais ou menos capaz de amar a vida.  Não consigo apreender que um ser humano escolha ser mau, assassino, muito invejoso ou infeliz. Infelizmente, faltam-lhe recursos internos e encontros amorosos capazes de fazê-los investir mais amorosamente na vida. A vida é misteriosa nesse sentido – nós nunca vamos poder compreender a fundo o que vai à alma de outro ser humano; que tipo de situações catastróficas vive alguém que precisa matar para não ser morto! Qualquer ser humano em contato com o misterioso da vida não ousaria fazer previsões nem querer explicar, por meio de rótulos e categorias, o comportamento de seu semelhante.

Mas, há outra coisa a ser dita sobre o comentário: o fato de nos sentirmos culpados por haver pessoas que nunca vão ser tão desenvolvidas quanto nós não faz com que estas pessoas, magicamente, se tornem melhores e mais felizes. Se isso pudesse acontecer, até concordo que este sentimento valeria a pena: nós ficaríamos culpados e tristes com aqueles que não são tão afortunados quanto nós e eles mudariam e passariam a ser mais felizes, mais competentes, etc. Isso, aliás, é muito comum de vivermos com nossos familiares. Suponhamos que você foi mais longe que seu irmão ou irmã e que sente muita culpa por isso. É fundamental questionarmos isso que diz Nietzsche: você não escolheu ter mais recursos internos que seu irmão ou irmã, mas, uma vez o tendo, isso faz de você mais responsável pelo seu crescimento. A responsabilidade de ir até o máximo que puder. Esta seria sua retribuição à humanidade por ter nascido com maiores recursos! Este, para mim, é o sentido máximo da passagem bíblica: “A quem muito foi dado, muito será exigido”.

O que quero questionar é o seguinte: as pessoas não mudam porque nós nos sentimos mais culpadas ou infelizes. O mundo vai continuar como é, ou seja, as pessoas vão continuar a ser aquilo que elas são, mesmo que nós estraguemos os nossos recursos nos culpando ou ficando tristes. Porque as pessoas são o que são. Este é um modo onipotente de pensar e que é compreensível. Afinal, quem não gostaria de ter o poder de mudar sua realidade, de ajudar as pessoas que sofrem inutilmente? Mas, nós não temos este poder de transformar as pessoas.

A nossa única responsabilidade (e isso já não é pouco) é com nós mesmos. É a de podermos cuidar bem daquilo que nos foi dado generosamente pela vida!

Esta é uma visão profunda sobre a vida que tenho adquirido: a de que nosso poder de transformação da realidade e de outros seres humanos é quase nulo; exceto se eles próprios sentirem a necessidade pela mudança. E este anseio vem de dentro e não de fora! Isso faz de nós seres profundamente limitados e impotentes diante do imponderável da vida. É contra esta percepção que nos rebelamos. Foi isso que compreendeu Sófocles, na figura de Édipo em Colono, quando este disse: “Quer dizer que quando não sou nada, sou homem?”

Assim diz Nietzsche sobre isso:

“O que é mais útil ao outro? Saltar imediatamente em sua direção e ajudá-lo – o que ocorre só muito superficialmente – ou, formando a partir de si mesmo algo que o outro vê com prazer: um belo, tranquilo jardim fechado em si mesmo, que tem altos muros contra tempestades e poeiras da estrada, mas também um portão hospitaleiro?”

 Trocando em miúdos: Nietzsche nos ensina que a melhor coisa que podemos fazer pelo outro é podermos ser os mais felizes e realizados que pudermos, pois, é por meio de exemplos, muito mais do que palavras que o humano aprende e se transforma. Ver alguém feroz e corajoso lutando pela vida é muito mais estimulante do que “ganhar de mão beijada”.

Poder avistar alguém que se respeita, assim como à vida, que cuida de seus pequenos tesouros internos como se fossem pérolas, que busca a verdade e a compaixão sem grandes arroubos de onipotência é, para Nietzsche, a grande contribuição que podemos fazer à humanidade.

E há ainda mais. Segundo ele, existe uma espécie de vício humano a exagerar a dor e a infelicidade, enquanto se cala a respeito da alegria e do bem viver. É como se houvesse, dentro de cada ser humano, uma espécie de olhar viciado e maldoso sobre si mesmo e sobre a vida que tende a valorizar muito mais o sofrimento do que a alegria do viver. Assim ele diz:

“Quer-me parecer que de dor  e de infelicidade sempre se fala com exagero, como se fosse uma questão de arte de bem viver exagerar nisso. Em contrapartida, cala-se obstinadamente que contra a dor há um sem número de meios de alívios. Uma perda, por exemplo, dificilmente continua sendo uma perda por uma hora. De algum modo, com ela, também um presente nos caiu da vida: uma nova força, por exemplo. E mesmo que seja apenas uma nova ocasião para reencontrarmos a força.” 

Sendo assim, resta-nos sentirmos felizes com a sorte de termos nascidos com mais capacidade para amar do que para destruir e O MAIS IMPORTANTE – nos responsabilizarmos por esta dádiva que ganhamos. E irmos tão longe quanto pudermos!

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