Entre a tragédia e o sonho: um olhar psicanalítico sobre o filme “As aventuras de Pi”.

  O ser humano é o único dentre todos os outros animais que possui uma incrível capacidade plástica de transformações, adaptações e ressignificações de sua vida.

Esta capacidade única do humano de transformar suas experiências vitais em algo útil e valioso para suas aprendizagens é sublime porque nos coloca diretamente em contato com nossa potência criativa diante do que nos acontece na vida.

Assim, se por um lado somos fortemente limitados pelas forças intempestivas da natureza (a maior delas é a nossa condição frágil e mortal, diante da qual não há nada que possamos fazer), por outro, a plasticidade e a capacidade de transformação inerente ao ser humano nos situa em um universo vital (e mental) que pode ser modificado a qualquer momento, a depender obviamente da nossa condição emocional e psíquica para realizar as transformações e aprendizagens necessárias.

Isso faz de nós, ao mesmo tempo, seres determinados e também agentes de nossa própria história.

Diante disso, o meu objetivo aqui é mostrar como, diante de situações consideradas traumáticas e trágicas para a mente (às quais qualquer um de nós está sujeito na vida), algumas pessoas podem ficar impedidas de realizar transformações mentais de modo a aprender com suas experiências, enquanto outras podem – mediante a sua alta condição psíquica para transformar experiências terríveis em sonhos possíveis – fazer do “limão azedo que a vida lhes apresenta uma limonada”.

Para tanto, irei utilizar como modelo para esta discussão o belíssimo filme “As aventuras de Pi”.

Tive oportunidade de assistir a este belo filme três vezes e em cada uma delas me vi impactada de um jeito diferente. A começar pela beleza das imagens que nos convidam a ingressar em um mundo onírico, de cores vivas e brilhantes.

Já de início, portanto, somos informados que vamos adentrar no mundo lúdico e criativo dos sonhos, lugar em que realidade e fantasia se misturam; lugar em que pouco importa se algo é verdade (no sentido realista da palavra) ou criação fantasiosa. Neste espaço transicional (para usar um conceito de Winnicott) não sabemos quem criou o que, nem tampouco se aquilo que fora criado é verdade ou ilusão – discussão que, nestes casos, não tem a menor importância.

Muitas pessoas com quem conversei sobre o filme ficaram realmente intrigadas se Richard Parker (tigre de bengala que acompanhou o menino enquanto ficara perdido no Pacífico), assim como os outros animais, eram reais ou invenção do menino Pi. Penso que isso é o que menos importa nesta história. Mais adiante vou explicar por que.

Mas, antes, farei uma breve apresentação da história.

A história:

Era uma vez um menino chamado Piscine Patel. Seu nome fora dado em homenagem a uma piscina de águas límpidas e claras da França. Segundo o tio de Piscine, todas as crianças do mundo deveriam poder nadar naquela piscina. Tio sábio que sabe que as águas marcam nossos inícios de inauguração no mundo… o feto no líquido amniótico, a sensação de contiguidade água – feto  – mãe. Enfim, são estas experiências que experimentamos a cada vez que mergulhamos na água, situação que explica em parte o fascínio que quase todos os seres humanos têm pelo mar e pela água em geral.

Ou seja, somos informados que menino Pi (que tinha água no nome) já tinha alguma familiaridade com seus inícios, que ele tinha dentro de si condições psíquicas de mergulhos mais profundos em águas primitivas e revoltas. Outra alusão ao seu nome refere-se ao número grego Pi que, conforme sabemos, tende ao infinitivo. Aliás, este é o jeito criativo que ele encontra de se livrar da maldade dos coleguinhas de escola que lhe chamavam de Pipiscine. Pi decora todos os números de Pi e dá show na escola. Com isso já começa a nos contar de sua imensa condição interna para enfrentar turbulências na vida…

Piscine cresceu em um zoológico cuidado por seu pai, homem racional e bastante científico, e sua mãe, uma belíssima indiana com forte ligação com a religiosidade (não com a religião!). Casamento interessante entre religiosidade e ciência, não?

Ciência e Religiosidade: coisas opostas?

             Seriam estas coisas opostas? Penso que não. Pi é prova de que o acasalamento entre ciência (pai) e religiosidade (mãe) pode dar coisa boa e que, absolutamente, não precisam ser coisas opostas. Pi era a prova viva disso. Na vida adulta lecionava na universidade (símbolo máximo da ciência) disciplina sobre diversas religiões aparentemente opostas entre si. Ou seja, por meio do olhar deste menino aprendemos que mais importante do que a Verdade da ciência ou de cada religião está o espírito investigativo que nos move, seja na ciência, seja na religião, a nos perguntarmos quem somos, de onde viemos, pra onde vamos…

Ele nos ensina que o importante não são as respostas, ou melhor, a Verdade absoluta que cada uma destas searas acha possuir. O mais importante é a arte da pergunta. Pouco importa com o que você vai responder às suas questões. Importa mais que você não deixe de se perguntar. Penso que é deste olhar curioso que Pi tinha sobre o mundo, sobre si mesmo e sobre a realidade que o Ang Lee nos fala e que nos provoca tanto encanto.

Seu pai, homem da ciência, lhe diz que acreditar em várias religiões é a mesma coisa que não acreditar em nada. O que ele não sabia é que a ciência também pode ser uma religião. Para ele, era. Seu intuito era fazer com que Pi tivesse um olhar racional para a vida. Por isso força o menino a ver Richard Parker, o tigre de bengala recém-adquirido no zoológico que ele cuidava, devorar uma gazela. Seu intuito era provar ao menino que animais não têm alma e que, portanto, apegar-se a um como se ele fosse outro ser humano é uma grande ilusão.

A sorte é que Pi tinha dentro de si um casal interno sólido, formado pelo seu pai cientista e sua mãe com forte religiosidade. Por isso, ele aprende com cada coisa, com cada situação trágica e segue pela vida observando, com olhos criativos e ávidos por conhecimento genuíno. Na psicanálise chamamos este desejo inato por aprender de desejo epistemofílico. Em muitas situações, as crianças deixam de possuir este desejo seja pela eclosão de potentes sentimentos de inveja que ela sente por perceber que ela não sabe coisas que os adultos (seus pais) sabem, seja porque, por conflitivas emocionais, o impulso curioso é sentido por ela como algo perigoso.

A partida de Pi rumo às profundezas do oceano:

Mas, seguindo a história, o pai de Pi começa a enfrentar dificuldades financeiras e decide vender o zoológico e se mudar para o Canadá. Toda a família, além dos animais, embarca em um navio e parte. A dor de Pi é tremenda por deixar suas raízes. Nesta viagem, mais especificamente nas fossas Marianas (região mais profunda da Terra), diante de uma forte e violenta tempestade, o navio naufraga. Toda a família de Pi morre, assim como os animais. Pi, em uma situação terrivelmente trágica, perde tudo e está só no meio do Pacífico. Só ele, Richard Parker, o tigre de bengala que seu pai dizia não ter alma nos olhos, uma macaca, uma zebra e uma hiena.

A capacidade humana de fazer “do limão azedo uma limonada”:

                Eu disse acima que o meu objetivo neste texto era discutir a capacidade que alguns seres humanos possuem de “fazer do limão azedo, uma limonada”. Pois bem. Pi vive uma terrível tragédia, à qual todos nós estamos sujeitos. Perde seus pais e seu irmão. Deixa sua terra natal e está no meio de águas revoltas, perdido e só. Mas ele é capaz, graças à sua forte condição interna de amar a vida, de fazer do limão uma limonada.

Neste caso, quem é Richard Parker, afinal? Eu disse acima que neste filme pouco importa se Richard Parker e os outros animais existiram de fato ou representam, como no final do filme somos informados, pessoas humanas (a zebra, um tripulante; a macaca, sua mãe; a hiena, o cozinheiro maldoso e sádico e Richard Parker, o próprio Pi).

Neste caso, penso que a discussão sobre qual versão é a Verdadeira é absolutamente irrelevante. Assim como é irrelevante a discussão sobre se a ciência é mais ou menos verdadeira que a religião.

A meu ver, a discussão central que este belíssimo filme nos apresenta se refere à alta capacidade que um ser humano possui de manter viva dentro de sua mente o desejo e o anseio pela vida, que na psicanálise batizamos de Impulso de vida.

Ou seja, a capacidade de transformar tragédias em algo sonhável – como faz Pi – nasce da capacidade de amar a vida, da condição de conter dentro de si a vinculação com os impulsos de vida.

Em um momento do filme, Pi diz que só conseguiu sobreviver porque Richard Parker estava com ele. O que quer dizer com isso? E porque Richard Parker, ao final, parte sem olhar para trás? O que Ang Lee quer comunicar com isso?

Obviamente a interpretação de um filme quase sempre reduz a beleza e a plasticidade contida em uma obra de arte visual. Portanto, minha intenção não é reduzir a obra e explica-la, mas propor ao leitor um olhar possível sobre o que esta obra de arte provocou em mim.

Quem é Richard Parker?

                Neste caso, associo Richard Parker a aspectos pulsionais (pulsão para a psicanálise significa aquilo que do humano está no limite entre o somático, ou seja, o animal, e o mental) do próprio Pi. Trata-se dos seus aspectos impulsivos, primitivos e profundamente necessários à sobrevivência humana na terra. Por isso foi Richard Parker que o salvou. Foi a possibilidade de se manter conectado internamente aos seus aspectos pulsionais, mais especificamente, à pulsão de vida, que o manteve a salvo da morte – aquela com quem todos nós nos encontraremos algum dia.

E por quê Richard Parker não olha para trás?

Richard Parker não olha para trás porque o lugar da pulsionalidade é no meio da floresta (do inconsciente). Ela está lá o tempo todo sustentando a nossa mente, mas não pode aparecer em meio à civilização porque nossos aspectos primitivos representam uma ameaça aos nossos anseios civilizatórios. É por isso que diz Pi: um ser humano só conhece o seu limite quando passa fome! Ou seja, é quando estamos frente a frente com a limitação do nosso corpo, na luta ferrenha pela vida (que é o que acontece na selva, na savana, nos meios selvagens) é que nos aproximamos da pura pulsionalidade. Ali, somos bichos. Somos todos Richard Parker.

Pi era o menino das águas e tinha condições mentais de suportar isso. Sua fome pela vida era imensa. Seu amor pela vida também. Foi isso que possibilitou a ele transformar esta tragédia em sonho possível.

                Os animais, neste sentido, são todos personagens de um sonho. Nascidos diretamente de seu universo simbólico, eles são absolutamente necessários para que Pi pudesse continuar investindo na vida. Caso contrário, ele certamente não teria sobrevivido. A ilha que Pi encontra no meio do oceano, que lhe dá suprimentos e água limpa, mas também que mata à noite qualquer coisa viva, também nasce daí. Relembro a vocês que Pi encontra a ilha em um momento limite. Se ele não a tivesse encontrado (ou criado?), teria morrido.

A tragédia transformada em sonho:

Na nossa vida também é assim. Todos nós temos nossas tragédias pessoais: perdas, mortes, doenças, lutos, sonhos interrompidos, frustrações.

Diante delas, somos convidados a transformações. Ou seja, é da possibilidade de transformarmos nossas tragédias em sonhos que está a nossa condição de sobrevivência, física e psíquica. Sem este investimento constante do nosso imaginário diante da crueza do real, a vida humana morre e não é mais possível.

Por isso é tão sério quando nos encontramos com uma criança que não brinca mais. Ou com um adulto, como o pai de Pi, que aborta e mata cruelmente sua capacidade de sonhar.

A capacidade de sonhar para Bion:

Há aqui um adendo importante a ser feito. Estou usando sonho neste texto mais no sentido que Bion usa do que no sentido de sonho do senso-comum, ou seja, do sonho que temos à noite.

                Para Bion, toda experiência humana precisa ser sonhada, ou seja, transformada em algo pensável, assim como fez Pi. No seu caso, frente à sua tragédia pessoal e, pela sua alta capacidade psíquica para aguentar as pancadas da vida, ele pôde não só sonhar suas experiências, mas compartilha-las sobre a forma de narrativa, feita ao jornalista.

Os japoneses querem a Verdade:

Depois que Pi é encontrado, dois japoneses que conhecem pouco ou quase nada sobre a arte de sonhar para viver, querem a verdade. Pi diz a eles: Vocês querem algo conhecido, algo que já tenham visto antes? Eles respondem que sim. O que eles querem, afinal?

Penso que os japoneses representam no filme uma espécie de discurso social (difundido na família, na escola e na sociedade como um todo) que vai paulatinamente matando (ou restringindo)  a capacidade humana para sonhar, para acreditar no impossível, naquilo que não tem lógica, pelo menos do ponto de vista da razão. Em suma, os japoneses representam o discurso da lógica, da medicina, do exato, do dois mais dois são quatro, da linearidade. O problema é que nada disso rege a nossa mente, a nossa subjetividade, o nosso inconsciente. Ou seja, a mente humana, o nosso psiquismo é regido por outra lógica. É regido pela lógica do sonho, onde não há oposição entre real e fantasia, ou seja, onde perguntar se é verdade ou não é uma grande falta de educação!

Em suma, acredito que Ang Lee nos traz neste filme uma discussão atualíssima que é: o que nós como sociedade temos feito com a nossa capacidade de sonhar? – condição, como eu disse acima, necessária para enfrentarmos as nossas tragédias pessoais?

Enfim, penso que neste filme ele faz uma grande crítica ao racionalismo que tem assolado a nossa sociedade (em várias instâncias), tornando-nos nada mais nada menos do que meros reprodutores de discursos lógicos, coerentes, mas, que no fundo, não fazem o menor sentido ao homem porque não nascem da sua capacidade criativa. Não nascem da sua subjetividade, do seu inconsciente. Pi é aquele que vem lembrar a seu pai e a todos nós que sem a condição de sonho não há sobrevivência na vida.

Por isso, acredito que este filme contém uma bonita e esperançosa mensagem sobre a capacidade humana (única entre todos os animais) de transformar suas experiências trágicas em algo que sirva ao crescimento. Cada um de nós carrega dentro de si um bonito e potente tigre de bengala, que nos vincula à vida, que nos faz sermos bicho quando é preciso, que nos faz lutar pela nossa sobrevivência física e psíquica, que nos faz lutar por aquilo em que acreditamos. Pi chora quando Richard Parker parte. Mas, ele está lá, dentro dele, dentro de cada um de nós, esperando para ser encontrado. Ou reencontrado? É a nossa capacidade de amar a vida que nos conecta a ele, ou a nós mesmos, em uma bonita e profunda ligação com as profundezas do nosso psiquismo, onde vivem os sonhos, as esperanças e as ilhas encantadas no meio do imenso e revolto Pacífico que é a vida na terra.

Por outro lado, para isso é preciso que Richard Parker encontro solos onde ele possa ser acolhido. É preciso que ele encontre pessoas que acreditem na existência de sua alma…

E você, em que acredita????

 

8 comentários em “Entre a tragédia e o sonho: um olhar psicanalítico sobre o filme “As aventuras de Pi”.”

  1. Olá! Adorei sua análise sobre o filme, eu assisti ele acerca de um ano atrás e o achei fantástico.
    Suas proposições sobre o enredo e o objetivo do filme são realmente intrigantes, nunca havia refletido o filme dessa forma, e agora que parei para pensar vejo que foi realmente esse anseio e desejo pela vida que fez Pi sobreviver essa tragédia.
    Parabéns pelo site maravilhoso!

    1. Olá, Carla. Esse filme é belíssimo, não é? Eu acho que ele nos ajuda a fazer reflexões sobre a capacidade humana de sobreviver às grandes tragédias da vida, fazendo uso dos nossos recursos internos (algo que o menino Pi tinha de sobra). Que bom que você gostou das minhas reflexões. Estou planejando o lançamento de um livro com reflexões sobre vários filmes. Quando for lançado no mercado, eu te aviso. Grande abraço pra você!

  2. A leitura que você realiza do filme faz muito sentido para mim e minha prática na saúde mental. Assiti novamente e pensei que o nome do navio, o qual Pi estava com a família, também poderia ser alegoria de algo. Pesquisando encontrei o conceito de Tsimtsum, que seria um evento criador, produzindo uma dúvida, vazio, crise. Rompimento que levaria a um rearranjo do sujeito. Um abraço

    1. Olá Fernando. Muito interessante a sua associação com o nome do navio. Não havia me atentado para isso. Mas acho que é isso mesmo. Frente àquela experiência catastrófica (mudança catastrófica de Bion), que leva Pi à perda de todo o seu universo e à sua identidade conhecida, um novo arranjo tem que se dar. É a crise que leva ao crescimento mas que também implica em ruptura com o conhecido, que é o que acontece com toda aquela família que tem que deixar sua terra natal, sua língua, suas origens e seus costumes para trás. Pensando neste aspecto o filme pode ser compreendido como uma alegoria do processo pelo qual todo ser humano deve transitar pela vida, para se sentir de fato vivo, processo este que passa pela ruptura, pela crise e por novas reestruturações. Forte abraço.

  3. Não precisa ser sonhador. Em situações limites onde a vida está por um fio, a mente automaticamente começa a traçar seus planos de fuga. A pessoa permanece no mundo imaginário até a mente alcançar a completa sanidade pra absorver a nova realidade de forma racional.

  4. Muito interessante a análise do filme. A pulsão de vida tem muito a ver com questão de “sentido” e esse sentido é encontrado pela relação com o tigre. Como o Pi relata que o medo e o cuidado com o tigre foi o que o manteve vivo e lhe trouxe um sentido para a sua sobrevivência.
    A capacidade do ser humano em enfrentar e superar traumas e conflitos ė realmente incrível.
    O mundo é aquilo que nós construímos, nós temos a oportunidade de escolher qual história queremos acreditar.

    1. Thaysa, gostei muito das suas considerações sobre o filme, particularmente sobre a relação que estabelece entre a pulsão de vida e a busca por sentido. Obrigada por compartilhá-las aqui no blog. Forte abraço!

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