Grande Sertão: Veredas – uma experiência estética e psicanalítica sobre o processo de vir a ser quem se é.

Meu intuito neste texto é tecer algumas reflexões acerca da obra-prima Grande Sertão: Veredas, escrita por Guimarães Rosa (psicanalista nato por intuição profunda sobre a vida) quando este contava com mais ou menos quarenta anos de idade.

A saga épica

A saga sertaneja versa sobre a trajetória de Riobaldo em direção a ser quem ele era, ou melhor, em direção a si mesmo em um casamento profundo com suas percepções sobre a realidade trágica que rege a vida humana. Neste caso, penso que a alegoria do sertão nos remete ao sertão que é a vida humana, com suas misérias, encantos, feiuras e belezas.

No início de sua longa saga, Riobaldo perambula pelo sertão sem saber muito bem quem ele era. Pula de um bando para o outro, sem convicções próprias, recebendo os mandos dos chefes sobre o que devia fazer e pensar. Neste instante, Riobaldo passava pela vida, simplesmente passava, assujeitado de si mesmo. Em termos psicanalíticos, podemos considerar que ele não havia podido realizar até aquele momento um casamento profundo com suas dimensões mentais inconscientes, as únicas que poderiam auxiliá-lo a fertilizar o sertão que é a vida e a dar algum sentido à sua existência e passagem por este mundo tão carente de sentido e de lógica.

Diadorim: através de

Mas, em suas andanças, Riobaldo conhece Diadorim. Diadorim em grego (vejam como Guimarães Rosa sabia das coisas!) significa através de (dia – de, dorim – através). A partir do instante em que Riobaldo conhece este menino de olhos vivos, conhece o amor. Neste sentido, podemos pensar que Diadorim foi o meio através do qual Riobaldo pôde se encontrar consigo mesmo. Notem que o meio através do qual isso foi possível foi um meio amoroso, fruto de uma relação de beleza poética e fertilizante quando comparado ao sertão que é a vida e ao sertão ao qual Riobaldo estava mergulhado internamente. Seria esta uma metáfora de Guimarães que nos alerta para o fato de que nós só podemos vir a ser o melhor da gente através de uma relação amorosa, conosco e com o outro? Penso que sim.

O livro segue e Riobaldo sofre por não conseguir compreender o seu amor por outro homem. Diadorim – seu grande amor – havia se embrenhado pelas jagunçagens do sertão para vingar a morte do pai Joca Ramiro, cometida pelo maldoso Hermógenes – representação exemplar da pura maldade que habita os recônditos da mente humana. Neste sentido, Diadorim é uma alegoria da coragem humana necessária para transitarmos por esta vida. Em meio à crueldade e violência da jagunçagem, Diadorim enfrenta todo tido de dificuldades para lutar por algo em que acreditava e para, finalmente, poder vingar a morte do pai. Com isso, mostra-se forte para enfrentar a maldade, mantendo uma postura digna e corajosa frente à vida.

Em muitos momentos da saga, Diadorim alerta Riobaldo sobre a necessidade de tomar as rédeas de sua própria vida e de agir por convicção própria. Também diz a ele que ele teria condições de liderar o bando (ser o líder de si mesmo), desde que pudesse vencer o medo paralisante e a insegurança aterradora que o assolava. São passagens belíssimas que nos remetem a esta verdade inexorável da vida humana – a que diz que um ser humano só pode se assenhorar de si mesmo, encontrando alguma autoria de pensamento no mundo, quando é capaz de vencer corajosamente o medo de pensar por si mesmo e fazer um casamento fértil com a dimensão do seu inconsciente. É só isso que nos salva da paralisia mental, da mesmice e da repetição estéril.

Este caminhar no sentido de tomar contato com o real da vida humana, trágica por excelência, faz com que Riobaldo possa fazer reflexões como estas:

            Vivendo, se aprende; mas, o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

            Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza.

            Eu tinha medo de homem humano.

            O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

            Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina.

            Os fatos passados obedecem à gente; os em vir também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – é o que é.

            O ódio – é a gente se lembrar do que não deve-de; o amor é a gente querendo achar o que é da gente.

 São percepções belíssimas e de profundo impacto estético e emocional sobre o leitor porque falam da humanidade de cada um de nós, da imprevisibilidade e da falta de controle que marcam a vida humana, ao mesmo tempo em que também apontam para a importância de podermos transitar por esta vida em um estado amoroso, querendo encontrar o que é da gente, e só da gente – única condição que faz com que a vida humana possa encontrar algum sentido.

O encontro com o inconsciente

Retomando a saga, depois de muitas perambulações pelos sertões, e, Riobaldo, cada vez mais decidido a tomar contato com as profundezas da sua existência, certa noite, assustado com aquelas sensações novas que o invadiam porque algo já estava em transformação dentro de si, decide procurar o demônio, fazendo um pacto com ele.

Penso que o demônio representa exatamente as forças dionisíacas – como diria Nietzche – ou, em termos psicanalíticos, as forças do inconsciente para as quais um ser humano não pode dar às costas, não sem pagar um preço alto por isso – o preço de monotonia, da repetição, da ausência de sentido na vida.

Então, Riobaldo, em um ato de plena coragem e determinação – que lembra muito o processo vivido por um sujeito em análise quando este deixa de ser dominado e controlado pelas forças inconscientes, para se apossar delas, através do conhecimento íntimo e profundo de si – vai em direção ao demônio e se casa com ele.

Associações com o dionisíaco de Nietzsche

Aqui vale uma reflexão interessante. Porque nesta e em tantas outras obras (só para citar uma delas, temos o caso de Fausto de Goethe) as forças vitais do inconsciente são associadas ao demônio, ao diabo? Penso que isso se relaciona a algo que Nietzsche formulou tão bem sobre as forças apolíneas e dionisíacas que regem a vida humana.

Para este filósofo, as forças dionisíacas – as únicas que levam à desacomodação, à ruptura, ao novo – são também muito impactantes e causam temor exatamente pela sua força disruptiva. Daí ser considerada por muitas pessoas algo perigoso e nefasto – exatamente como a imagem mítica do demônio.  Nietzsche associava estas forças dionisíacas às forças da natureza e dizia que o homem não pode se apartar delas – das forças que o lembram de que é um ser da natureza, antes de ser social e cultural – sem pagar um preço alto por isso. Esta concepção do filósofo é muito semelhante à concepção de inconsciente, desenvolvida por Freud.

Em ambos os casos – no do filósofo Nietzsche com as forças dionisíacas e no caso do inconsciente freudiano – a ideia é a mesma. Trata-se das forças pulsionais (representante psíquico dos instintos, ou seja, da nossa ligação mais primitiva com a nossa condição animal) que desacomodam a mente e que por isso são associadas com forças do demônio, por desarrumarem tudo, deixarem tudo fora do lugar. Entretanto, são estas forças que tiram tudo fora do lugar – a força do inconsciente – que definem intimamente a nossa vida.

Afinal, enquanto estamos vivos, há desacomodação, movimento, subidas e descidas. Exatamente como um ecocardiograma. São as forças de morte (pulsão de morte para Freud) que nos levam a querer a inércia, a ausência de movimento, a ausência de conflitos e tensões. Ou seja, podemos conjecturar que foram as forças de vida de Riobaldo que o levaram a se encontrar com o demônio, ou seja, com aquilo que tira tudo fora do lugar, que desacomoda. E, por outro lado, eram suas forças mortíferas ou, sua pulsão de morte, que regia sua vida até o seu encontro com o demônio, pois, neste caso, para não viver a desacomodação de estar vivo, Riobaldo se submetia ao seu próprio medo…da vida.

O demônio no pensamento judaico-cristão:

Em nossa sociedade, regida pelo pensamento judaico-cristão, a imagem do demônio é frequentemente associada a algo negativo, em parte porque exatamente o demônio é aquele que desarruma, desaloja, incita a transgressão. Lembra vocês que a figura de Satã, descrita por Milton em “O paraíso perdido”, que reconta o mito de criação de Adão e Eva da perspectiva do diabo, é uma das figuras mais interessantes da história. Ele fora expulso do paraíso e invadido por um ódio e inveja terrível pela figura de Deus-todo poderoso, vai até o paraíso, onde nós homens vivíamos tranquilos e sem conflito algum, e nos incita a comer a maça, o fruto proibido que representa o conhecimento. Ou seja, desde que comemos o fruto do conhecimento e passamos a ter consciência de nossa própria existência, de nossa condição mortal e finita, nunca mais tivemos sossego…porque assim é a vida.

Mas, voltando à saga épica. Depois que Riobaldo se encontra com o anjo caído – aquele que não se diz o nome – sua mente e seu modo de estar no mundo sofrem profundas transformações. Ele se torna mais corajoso e aquilo que o assolava no sertão (do seu mundo interno) não lhe mete mais medo. E ele faz o que precisa ser feito: segue sertão (vida) adentro. Agora na condição de líder de seu próprio bando. Sua voz agora sai firme de sua garganta porque ele pôde vencer o pior medo, o mais paralisante medo que um ser humano pode ter: o medo de enfrentar a si mesmo.

Neste momento, as passagens do livro se tornam épicas e muito inspiradoras. Riobaldo ordena, antevê situações de perigo, organiza e cuida de seu bando, não com um ar de superioridade sobre eles, mas como alguém que conseguiu atingir um estado mental de sabedoria profunda diante da vida. Com isso, todos o ouvem e o respeitam, porque ele próprio aprendeu a ouvir as vozes silenciosas que o habitaram desde sempre. Então, ele parte em caçada ao maldoso Hermógenes, não para humilhá-lo, mas para resgatar sua honra e a de seu amado Diadorim.

Em seu percurso pela vida, pelo sertão, Riobaldo nos inspira, assim como Diadorim, a poder realizar e se desenvolver apesar do medo. No caso de Riobaldo, foi somente depois de ter se apossado firmemente de quem ele era, em um casamento com as dimensões profundas de sua mente inconsciente, é que pôde encontrar sua voz.

Em suma, Guimarães demonstrou, neste livro, ter conseguido acessar, por meio de sua forte sensibilidade, verdades profundas sobre a vida humana. Por exemplo: que o único caminho possível ao homem é aquele que o leva dele até ele mesmo. Sem este encontro – às vezes tão temido e evitado pelas pessoas – estamos, de certa forma, condenados como Riobaldo no início da saga, a temer os próprios desejos. E aí, não podemos desejar nada. Nem mesmo podemos desejar viver.

O encontro consigo mesmo na análise

Na análise, algo muito parecido com o que vivenciou Riobaldo em seu encontro consigo mesmo (e com o diabo) se dá, pois, passamos a perceber cada vez mais a nossa profunda responsabilidade sobre o que nos acontece, e sobre o que não nos acontece na vida. Também aprendemos que a maior coragem que um ser humano pode ter na vida é a de se conhecer em profundidade, apesar do medo. Aprendemos também que, quando o medo pode ser suportado com a coragem típica de um bravo sertanejo, ele aos poucos se enfraquece e aquela forte luz que ameaçou nos cegar o olhar – a luz de tanta verdade nos olhos – passa a ser uma espécie de lampadazinha a nos guiar, agora como verdadeiros sábios, pela vida afora.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.