Hoje estou de luto.

Hoje estou de luto por alguns de meus vizinhos que, perplexos, me perguntaram por que eu chorava se minha casa estava protegida do incêndio que devorou por dois dias ininterruptos a mata e matou milhares de vidas mais honestas que a nossa.

Estou de luto pela falta de paixão de algumas das pessoas vestidas de vermelho que foram enviadas para nos ajudar, mas que se mostraram terrivelmente presas nas malhas da inércia. Desalmadas e carcomidas no ser por um salário miserável e por um Município que não as valoriza como salvadoras que em tese são, mostraram-me o quão triste é um coração sem alma, desacreditado de sua própria importância no mundo.

Estou de luto por aqueles que conseguiram chegar em casa após um dia de trabalho e ligar a TV mesmo com labaredas enormes devastando a vida e empesteando o ar a alguns metros de suas lindas e envidraçadas janelas.

Estou de luto por aqueles que passaram curiosos em seus carros de luxo e, sem nenhuma bondade, mas cheios de curiosidade mórbida simplesmente levantaram o pescoço para perscrutar a desgraça alheia.

Estou de luto por aquelas crianças medíocres e más que vi debochando das aves que voavam desesperadas tentando salvar seus filhotes. Mas por estas eu não estou de luto!

Por estas, nestes dois dias difíceis que vivi, meu coração se encheu de esperança na vida. Mais uma vez pude aprender com estes meus delicados companheiros de caminhada qual o verdadeiro sentido da nossa existência neste pequeno planeta azul à deriva no meio do universo.

Aprendi com o heroísmo bravo e guerreiro destas lindas aves que tentavam salvar seus pequenos filhotes já devastados porque sabiam que o gesto amoroso e cuidador da vida é tudo o que importa.

Aprendi com a majestade estupenda das árvores frondosas que vi lutando bravamente contra o fogo e que, tenho certeza, logo ressurgirão magníficas porque, muito melhor que nós, elas sabem que a vida é um grande ciclo ininterrupto de construção e destruição do qual todos nós fazemos parte.

Aprendi também com meu amado marido que, depois de um ato de desespero e dor, saiu como um Hércules em busca de salvar o que ainda pudesse de nossas amadas árvores em meio ao fogo e bombeiros. Uma alma bondosa e simples, trabalhador braçal de uma das obras ao lado da nossa casa, enxergou a nobreza de sua atitude e me disse: “Ele é um homem de coragem.” Senti orgulho por ser sua esposa.

Minha gratidão também ao bravo e devotado Fernando que pôde nos mostrar, em toda sua simplicidade, que a tenacidade do espírito é superior à qualquer regra. Fernando e Rodrigo, bravos guerreiros da esperança, continuem a trabalhar pela vida! Também minha gratidão por alguns vizinhos que, naquela noite, nos ofereceram abrigo porque não tínhamos condição de permanecer em nossa casa.

Aprendo mais uma vez com esta experiência que a vida é um fluxo ininterrupto de acontecimentos e que cabe a cada um de nós aprendermos, mediante a nossa maior ou menor capacidade de dar sentido ao que nos acontece. Quanto mais podemos aprender que a vida não é justa e nem “rosinha flores” como disse certa vez o sábio Guimarães Rosa, mas uma guerra brutal, paradoxalmente marcada por desamparo e beleza, menos melindrosos nos tornamos e mais capazes de valorizar o que realmente importa: nutrir bons sentimentos e amar o belo.

Vivemos hoje em um tempo sinistro em que a casa vale mais que a vida, em que o valor de uma pessoa não está mais em suas ações mas nos bens que ela possui; vivemos um tempo sinistro em que as manifestações de carinho e de compreensão pela dor alheia são raras; vivemos em um tempo sinistro em que as pessoas acreditam poder se blindar em suas casas de ferro sem perceberem que o que estão matando com este isolamento egoísta são seus próprios corações e suas próprias humanidades.

O que sobra daí é uma existência de plástico, estéril e sem sentido. Para preencher o buraco que fica bem no meio do coração, consome-se tudo que se pode: viagens, roupas lindas, belas joias, bebês loiros, casamentos estupendos, esquecendo-se com isso da regra mais importante do bem-viver: que tudo é transitório e passageiro; que nada é nosso, mas emprestado. No fim da jornada, cada qual só terá como parceiro de balanço final a própria consciência com as boas ou más escolhas que se pôde fazer pelo caminho afora.

E que sorte eu tenho de poder ser relembrada disso por algumas pessoas fortes que me acompanham no caminho e que me ajudam a ser o melhor que posso, mesmo que isso me cause dor e, às vezes, alguma solidão.

Na noite da tormenta fui relembrada pelo meu querido pai, homem que me deu de presente parte da força selvagem que tenho, que aqueles companheirinhos que morriam, dos quais eu podia ouvir choros lamentosos porque o fogo insano os cercou impiedosamente impedindo qualquer fuga, morriam de maneira heroica: lutando e sem medo de deixar ir.

No reino destes nobres companheiros, relembrou meu pai, não há hipocrisia, nem fingimento, nem egoísmo, nem covardia. Há sim uma espécie de inteligência do instinto que sabe que toda vida é feita para morrer. Não há, portanto, beleza maior do que a ave que morre em pleno vôo ou do ser que morre no puro exercício de sua máxima potencialidade. Tristeza, disse ele, é morrer por covardia, por medo fraco, por não escolher ser o melhor que se pode a cada momento e até o final. Pois não há preguiça ou covardia entre as formigas. Esta é uma praga que acomete somente a raça humana, da qual às vezes eu não gosto de fazer parte.

Mas quando meu coração se acalma e eu retomo meu santuário repleto de luz, de calor e de belas cores, resgato o meu lugar no mundo. E relembro que cada ser vivo tem uma missão na vida. E que renegá-la, isso sim, é a pior morte que existe!

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