Impactos da neurose nas relações conjugais à luz do filme A difícil arte de amar

dvd_8331Meu objetivo neste texto é demonstrar como a presença de neurose em cada um dos membros de um casal pode impactar negativamente a relação conjugal e, muitas vezes, inviabilizá-la. Para tanto utilizarei como estímulo para refletir sobre o tema o filme “A difícil arte de amar”, lançado em 1986 sob a direção do norte-americano Mike Nichols e estrelado por Meryl Streep e Jack Nicholson.

A história, aparentemente banal, começa com Rachel (Meryl Streep) flertando em um casamento com Mark (Jack Nicholson). Ela se apresenta como uma mulher independente, cabelos curtos, roupa elegante e sóbria. Trabalha como escritora de matérias culinárias na agitada cidade de Nova York. Durante a cerimônia, toma a dianteira no flerte, olha para ele, visivelmente mais velho que ela, pelo espelho da maquiagem. Ele, galante e com histórico de mulherengo (o solteiro mais famoso da cidade), devolve o olhar.

Ainda na cerimônia, várias mulheres choram, inclusive a terapeuta de grupo de Rachel, enquanto Mark cochila. Curiosamente Rachel não chora o que faz o espectador pensar que esta mulher, diferente de outras, arranjou-se em outra posição que não a de mulher romântica. Mas isso não vai se mostrar sustentável ao longo da trama, como veremos.

Pois bem. A história segue e, na festa, Rachel mais uma vez faz-se de ousada: ele a convida para tomar um drink em outro lugar e ela prontamente aceita. Passam a noite juntos. Depois do ato sexual, ela cozinha para ele um macarrão à carbonada. Ela diz: “Espero que você não me ache muito moderna cozinhando pra você logo na primeira noite”. Ele a defende, sedutor: “Não, não. Este é o melhor macarrão que já comi na minha vida. Quero comê-lo toda semana pelo resto da minha vida”. Nem um pedido de casamento como este logo na primeira noite de sexo vindo do “solteiro mais famoso da cidade” faz Rachel desconfiar.

Ela segue, embalada pelo seu sonho dourado e logo marcam a data do casamento. Neste dia ela chora. Vestida de noiva e, com todos os convidados a esperando, além do noivo, diz que não vai se casar, que não acredita em casamento, que seus pais nunca foram felizes juntos, o que parece ter sido verdade. O pai de Rachel confirma: sua mãe era “louca”, leia-se frágil e ele próprio, um homem que nunca conseguiu ser fiel.

Este é, portanto, o modelo de relação conjugal internalizado por Rachel: uma mãe frágil e um pai mulherengo. Não continuarei descrevendo a trama já que o meu objetivo é centrar-me neste modelo de pais internalizados para discutir a neurose de Rachel e de Mark. Só adianto que a história termina mal. Eles se casam, Rachel engravida e vai se abandonando. Mark a trai durante longo tempo com outra mulher. Ela descobre e, no início, tem dificuldade para se posicionar. Finalmente, ela consegue se separar e tudo indica que retorna de onde saiu: da casa de seu pai viúvo em Nova York. A menina por trás da mulher comparece o que me faz levantar a hipótese da presença de uma neurose não elaborada.

O que é uma neurose para a psicanálise?

Freud designou que neurose é uma situação em que pessoa permaneceu fixada em alguma vivência emocional do passado à qual repete incessantemente em sua vida presente. Mas à qual situação emocional a pessoa que tem uma neurose ficou “presa”?

Para ser bem direta, ela ficou presa ao amor infantil que sentiu, no passado, pelos pais. A este amor apaixonado e sensual Freud nomeou “Complexo de Édipo”, que acontece de forma diferente na menina e no menino. No caso de Rachel, a hipótese que levanto é a de que ela permaneceu presa ao amor apaixonado que sentia pelo pai, situação que a fez buscar um homem bem mais velho que ela e mulherengo como o pai. Isso explica porque Rachel, mesmo adulta, ainda morava com ele e também porque ela se comportou como uma menina amedrontada no dia do casamento, que era o dia em que ela teria que se desligar do pai para ir morar em outra cidade com o marido. O problema é que como uma neurótica Rachel escolhe inconscientemente um homem parecido com o pai (modelo não muito interessante de se buscar como marido!) sendo que ela própria, identificada com a mãe, comporta-se como uma mulher frágil e abandonada de si mesma no casamento, fazendo com que o destino deste casal se torne inviável, exatamente como aconteceu com os pais.

Mark também sofria de uma neurose. Sua síndrome de Don Juan me faz pensar na dificuldade que ele encontrou em fundir na mesma mulher a corrente terna e sensual de sua libido, situação que também revela de sua parte uma fixação na mãe. Vale lembrar que foi logo depois que Rachel teve a filha que ele começou a traí-la. Ou seja, depois que ele passou a vê-la como mãe, viu-se impossibilitado de vê-la também como objeto sexual, situação que revelaria de muito perto o desejo real do seu inconsciente de ter relações sexuais com a mãe.

Mas, voltando à Rachel sua neurose comparecia ainda de outra maneira, muito frequente entre as mulheres. Tratava-se do seu desejo incontrolável de entregar-se nas mãos do objeto amado. Em uma linguagem lacaniana, fazer do Outro o falo dela. Fazendo uma extensão da posição fálica de Freud, Lacan teoriza que neste período é o Falo o objeto de investimento sexual da criança. Para o menino, o falo é a mãe. É com ela que ele quer se excitar e ter uma relação sexual, impossível do ponto de vista do eu. Já para a menina, que não é possuidora do Falo-pênis (refiro-me à falo como símbolo de poder e não como o órgão pênis), sua meta é ter o Falo-amor. Seu anseio por completude neste período advém da fantasia de entregar-se toda ao objeto amoroso pai. Era isso o que acontecia com Rachel. Frente ao substituto paterno ela acreditou no engodo de que todo o amor que ele lhe daria bastaria a ela. Com isso, ficaria completa, não faltante. Por esta ilusão de completude, pagou um preço alto: o preço de sua autonomia como sujeito do próprio desejo.

A resolução do Complexo de Édipo, tanto no menino quanto na menina, consiste na constatação de que a realização do desejo sexual incestuoso é impossível, assim como é impossível a satisfação plena em qualquer relação sexual (“A relação sexual não existe”, Lacan). Nós resolvemos nossa neurose na medida em que aceitamos a castração, ou seja, a impossibilidade de realizarmos o desejo incestuoso, sobretudo, no caso do neurótico, pela via do sintoma. Neste árduo processo, nem Rachel nem Mark foram bem-sucedidos. Em seu inconsciente, Rachel acalentava o anseio de ser plenamente preenchida de amor-falo e de, nesta situação, nada mais lhe faltaria. O desejo, em sua visão infantil, estaria para sempre aniquilado. Por esta fantasia, pagou o preço da perda de sua autonomia como sujeito desejante. Em termos edipianos, a menina Rachel nunca pôde abrir mão de seu pai, avistando na concretização deste desejo algo do impossível. Já Mark, fazendo-se de falo sedutor, prometia algo que não podia cumprir. Prometia ser um homem viril. Mas pela sua neurose não podia sustentar tal posição no casamento com a esposa. Sua virilidade era aparente, mais encenada do que real. Em termos edipianos, era a imagem da mãe que ele avistava em seu inconsciente a cada vez que se deparava com a mulher grávida. Daí a impossibilidade de se satisfazer sexualmente com ela.

Antes de finalizar, queria sinalizar só mais um aspecto desta questão. Freud foi enfático ao dizer que a neurose infantil é construída com permissão do inconsciente dos pais. Ou seja, o inconsciente dos pais também está implicado na fixação no desejo incestuoso da criança. Esta questão fica evidente no filme. Logo que Rachel descobre a traição do marido, vai à casa do pai como uma menina frágil. A resposta do pai é curiosa. Diz-lhe indiretamente que ela mande de volta a filha de Rachel para Mark e que fique lá com ele. Curiosamente, ele não a trata como uma adulta dizendo-lhe, por exemplo: “Filha, seus problemas com seu casamento devem ser resolvidos na sua casa! Volte para lá e os resolva como mulher. ” Ao contrário! Ele endossa e reforça nela sua posição infantil possivelmente extraindo disso também algum prazer incestuoso. Concluindo, Rachel pode ter se tornado neurótica, em parte pela intensidade de seus desejos, mas também pela carência de um modelo feminino e masculino mais efetivos. Este é, penso eu, o aspecto transgeracional da neurose que vai sendo transmitido de pais para filhos.

Tais considerações psicanalíticas sobre os conflitos conjugais ou, sobre “a difícil arte de amar” são fundamentais na medida em que explicações racionalizantes e externas tendem a predominar nestes casos. Diz-se, por exemplo, para endossar este tipo de problema neurótica coisas do tipo: “Todo homem trai” ou “Toda mulher é frágil”, generalizações estas que empobrecem o nosso olhar e tornam inacessíveis as considerações sobre o complexo fenômeno do mundo interno e das manifestações do inconsciente. A psicanálise vai na contramão disso e chama o próprio sujeito a se indagar sobre o seu sofrimento causado, em última instância, por ele mesmo. Se Rachel tivesse visitado o divã de um analista antes de “escolher” seu segundo marido certamente seria confrontada com sua “escolha”: “Por que este homem, como seu pai? ”ou “Por que frágil, como sua mãe?”

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