Minhas primeiras jabuticabas

Que feliz aprendizado estou tendo ao poder cuidar de meu jardim e observar o ritmo próprio da natureza. Tenho me impressionado ao pensar como o cuidado das plantas e a observação atenta do ritmo da Terra podem ser uma rica metáfora da própria vida e de como devemos buscar vivê-la.

Mudamos para nossa casa no mês de maio deste ano e iniciamos nossa jornada nela com um difícil e árido outono. Neste momento, as plantas recém-plantadas e, portanto, ainda muito frágeis, começavam a perder suas folhas, em um processo que parecia de destruição, mas que, no fundo eu sabia ser de renovação. Enfrentando uma dura estiagem, lembro-me de como me senti exigida em minha capacidade de espera pela realidade inóspita porque meus olhos me levavam a crer que aquelas plantas não iriam sobreviver, por mais água que lhe déssemos.

Como elas ainda eram jovens e não tinham vigor suficiente para exibir frutos maduros (que é o que acontece no outono), não tinha a gravidez à mostra para me reassegurar de que a vida estava a salvo. Eram jovens plantas e precisariam de algum tempo para poder frutificar e o que me restava fazer era esperar pacientemente e regá-las todos os dias.

O solo seco fazia a água rapidamente ser sugada e eu a imaginava indo direto para as raízes sedentas pela fonte da vida. Num exercício imaginativo (porque eu que eu via estava seco e se despregando num ritmo frenético) eu apostava na força vital daquelas raízes que, longe dos meus olhos, estariam se espraiando por debaixo do solo e encontrando em si mesmas a força necessária para se desenvolverem e lutarem pela vida.

O difícil neste momento era acreditar que, através da paciência e do exercício diário de rega, algum milagre iria acontecer num futuro longínquo. Portanto, confiar mais no coração esperançoso do que no que os meus olhos viam foi o grande exercício da ocasião. Acreditar também na capacidade inata daquelas plantinhas de receberem e utilizarem bem os nutrientes que eu estava lhes dando era fundamental.

A chegada do inverno foi ainda mais difícil e exigente em termos de esperança. Os animais desapareceram da vista e eu sabia que eles estavam guardando suas últimas forças para chegarem vivos à primavera. A fonte de alimento para eles rareava porque o solo estava seco e sem água nada vive.

Os primeiros lampejos de inverno foram anunciados com ventos violentos que me faziam pensar que a terra estava em uma furiosa ebulição transformadora que, ainda que eu não enxergasse, podia intuir. Era como se grandes massas energéticas estivessem sendo transportadas de um lado para o outro. Como se os deuses estivessem se retesando e lutando nos céus fazendo tudo vibrar em um rancor endurecido.

As noites frias caiam rapidamente e os períodos de luz eram curtos. Em um piscar de olhos tudo ficava tenebrosamente escuro e eu me via em um movimento natural de buscar abrigo e luz dentro de casa. Sentia um medo irracional de sair na noite densa, exceto nos dias de lua cheia que, como mulher grávida, inundava de luz o negrume absoluto. Movimentos de esperança e desesperança, de medo e espera tensa se alternaram em meu coração nestes seis meses iniciais.

Entendi a partir daí porque o homem do campo ou o homem primitivo interpretavam os fenômenos climáticos como fúria ou benevolência dos deuses.

Um dia, relendo “O Evangelho segundo Jesus Cristo” de José Saramago encontrei a seguinte frase:

                 “(…) o mais eram as acostumadas e consabidas repetições duma terra que nos inverno parece morrer-nos     nos braços e nas primaveras ressuscitar, observação falsa, engano grosseiro dos sentidos, que a força da       primavera não seria nada se o inverno não tivesse dormido.”

Então, confirmei em uma escrita poética aquilo que estava sentindo. Tratava-se de um erro grosseiro dos meus sentidos acreditar que tudo estava morto. O dormitar invernal, ao contrário do que me diziam meus os olhos, era acúmulo de energia para a fecundidade primaveril. Assim como o organismo feminino se extenua a cada mês, em uma luta colossal, para preparar seu óvulo; assim como o bravo guerreiro acumula forças para triunfar na batalha, também a natureza se aquietava e se entesava para depois explodir em vida.

E eis que, então, os primeiros raios da primavera começaram a dar seus sinais. Os bichinhos hibernadores saíram de suas tocas, a chuva milagrosa começou a cair do céu e a vida se refez mais uma vez.

Desde então meu coração se enche de alegria a cada manhã quando, sob um céu límpido e azulíssimo, as flores coloridas salpicam o meu querido jardim de beleza; as borboletas coloridas correm de um lado pro outro, os animais se alimentam em abundância, e o meu coração se enche de enorme fé na vida.

Olhando para trás, sinto que cada momento vacilante de espera foi importante para meu deslumbramento de agora.

Extrai desta rica experiência um significado profundo. Penso que temos muito a aprender com o ritmo próprio da natureza.

Quando se trata de nosso semelhante, tal como as árvores e plantas, acredito que se os ajudamos a ser o melhor que podem, na dedicação e no trabalho diário do cuidado, na enorme maioria das vezes eles respondem com exuberância.

Como analista, a cada pessoa que recebo, busco confiar que suas raízes serão resistentes e generosas o suficiente para receberem e utilizarem bem os nutrientes que eu lhes dou. E embora nunca haja garantia sobre isso, prefiro apostar sempre que há recursos, ainda que eles tenham ficado muito judiados pela vida ou pelos impulsos de ódio e inveja.

E então, assim como a planta, se você cuida com respeito e dignidade, a pessoa responde se tornando um ser humano melhor.

Penso ser assim com qualquer coisa viva pela qual nos responsabilizemos por cuidar. Um filho, um bichinho, uma planta devolvem para nós aquilo que damos a eles. Se dermos amor, respeito e cuidado dignificante, respondem bem; se respondemos a eles reclamando do trabalho que nos dão, se os insultamos por nos serem cansativos e incapazes, se nos frustramos por não terem nascido perfeitos e acabados, ou, ao contrário, se o mimamos em demasia, tornar-se-ão plantas fracas e não belas.

No caso dos seres humanos, a tragédia pela falta de amor ou pelo excesso de mimos e de proteção (que não pode ser chamado amor) é ainda mais terrível porque, ao contrário das plantas e dos bichos, nós somos muito mais dependentes do que recebemos de fora.

Portanto, o aprendizado que esta experiência me dá leva-me a pensar no verdadeiro amor, no amor-dom.

O amor-dom sabe que o esforço diário, a rega quotidiana, a poda corriqueira é o verdadeiro ato amoroso. Amar só na beleza e quando está tudo pronto é fácil. Difícil é amar na dificuldade; difícil é amar quando tudo está seco, quando há tanto trabalho a fazer, quando quase falta a esperança. Mas é aí, e só aí, que o verdadeiro amor se exerce.

Aquele que só consegue amar uma planta quando ela está bonita e florida, na verdade, não a ama. Está apaixonado por sua falsa miragem. Aquele que ama seu filho só quando ele está cheiroso, mas que se queixa do trabalho quando tem que educá-lo, contar-lhe estórias sobre a vida, amparar do medo e ensiná-lo a ser gente de verdade, não ama verdadeiramente seu filho. Está apaixonado por sua própria perfeição. Aquele que só ama seu companheiro quando ele está feliz e bem sucedido, da mesma forma, não o ama verdadeiramente.

Este falso amor, no humano, está fadado à desilusão, à prisão pelo ódio, à falsidade e à hipocrisia. Apesar do amor-dom ser algo de difícil realização no humano, é algo que podemos e devemos buscar como propósito.

Além desta aprendizagem, minhas árvores e plantas me ensinaram ainda outra coisa.

Que o verdadeiro sentido da vida está nestas pequenas tarefas quotidianas, no trabalho miúdo com a vida; que é só podendo acolher com carinho o esforço diário que implica viver, é que a vida passa a ter sentido.

Pessoas insatisfeitas e infelizes no mundo todo se asfixiam com ilusões de ganhar na loteria, de mudar de país ou de planeta, quando na verdade não percebem que o verdadeiro heroísmo está em aceitar a realidade tal como ela é, sem ficções, sem fantasias.

Minha alegria de agora só é possível porque abracei todo o esforço angustiante do outono-invernal. Por não tê-las abandonado (e a mim mesma) à própria sorte é que posso agora me alegrar com o que me aconteceu hoje pela manhã.

Acordei e, como toda manhã faço, fui ao jardim e eis que avistei minhas primeiras filhas-jabuticabas, lindas e robustas, nascidas dos três pezinhos que plantamos lá.

Estas filhas-jabuticabas que agora me dão tanto orgulho são fruto do meu casamento sólido com a realidade, à qual, com toda sua ambiguidade, me preenche de esperas e de sonhos possíveis.

4 comentários em “Minhas primeiras jabuticabas”

  1. Ana, que lindo texto! Conseguiu dar um nome para um fazer da clínica, como metáfora do inverno que você faz aquele momento em que o outro está mais “raivoso” “seco de afeto”… e que como a necessidade do inverno para a florada… assim como a necessidade de amar, como clínicos, como seres humanos… e fazer uma escuta outra dos momentos de raiva, de insucesso, para uma possibilidade de escutar não apenas disto, mas o tudo mais, é ofertar amor, um amor etico! Me inspirou estas reflexões! Boa sorte da sua jabuticabeira!

    1. Querida Andréia, obrigada pelo seu comentário e fico feliz que meu texto tenha lhe inspirado. Comente quando quiser. Abraços a você.

  2. Ana, seu texto tão bonito me trouxe à mente uma passagem que encontrei nesta semana, a qual penso ter a ver com seu tema. É de Slavoj Zizek e diz assim:

    “A postura de manter uma distância apropriada do objeto mais desejado, com a intenção de não perturbar o seu encanto, é um claro sinal de amor falso: o amor verdadeiro não tem medo de se aproximar, nem de estar preparado para assumir o objeto desejado em todas as suas (dele/dela) realidades comuns e, simultaneamente, conservar sua situação sublime, como na paráfrase de Hegel sobre Martinho Lutero, para reconhecer a rosa do sublime na cruz da vulgaridade cotidiana.

    E a lição (ou melhor, implicação) política dessa posição de “reconhecer a rosa do sublime na cruz da vulgaridade cotidiana” não é que se deva mistificar a realidade existente, nem pintá-la com cores falsas, mas, pelo contrário, é que se deve reunir forças para transportar a sublime visão (utópica) para a prática cotidiana; em suma PRATICAR a utopia.”

    Acho que o reconhecimento do sublime naquilo que é cotidiano, rotineiro e desgastado é muito próximo da experiência poética, da abertura para o divino. E como estamos necessitados disto!

    1. Querida Lenice, gostei muito da contribuição teórica do Slavoj Zizek que meu texto suscitou em você. Ela pode auxiliar os leitores interessados no tema a buscarem novos enriquecimentos teóricos. Obrigada por compartilhar. Forte abraço.

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