Crônica de um casal quase moderno

O casal unido há quase vinte anos, com uma convivência tão satisfatória quanto pode ser a convivência entre dois seres humanos, acaba de ter uma relação sexual.

Com o auxílio de um vibrador, a esposa chega ao orgasmo e com isso se sente animada para continuar aproveitando a penetração. Satisfaz-se de novo. Terminado o jogo erótico, levantam-se, banham-se e vão à cozinha. Há uma louça a ser lavada e como um bom casal quase moderno, que divide todas as contas da casa igualmente, a esposa, entre ingênua e curiosa, pergunta:

– Quem vai lavar a louça hoje? Eu ou você?

– Você. Eu te fiz gozar…

Silêncio magoado e constrangido.

– Eu também te fiz gozar. Então, você lava a louça hoje!

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O problema da procriação em Freud.

O ato de procriar nos animais que têm seu comportamento sexual definido unicamente pelo instinto não é um problema moral. O que significa dizer que ele está fora do âmbito da escolha.

Mas o mesmo não acontece com os seres humanos, em que o ato de procriar inscreve-se – ou pelo menos deveria inscrever-se –  na problemática moral da escolha. Porque verdadeiramente desejo dar a vida a alguém é uma questão com à qual o ser humano minimamente inscrito na cultura deveria se debater em algum momento de sua vida.

Nesse sentido, será meu propósito neste texto, resgatar o que Freud postula a respeito do ato procriador nos seres humanos, a partir de suas reflexões no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” e mostrar como aquilo que ele coloca lá, e que está implicado no ato procriador, costuma estar radicalmente recalcado no âmbito da cultura.

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Por que não fica?

Em tudo o que vivemos, em tudo o que fazemos, em cada lugar que habitamos, em cada pessoa que amamos, por cada filme ou livro que choramos, deixamos uma parte de nós. Despedir-se desta parte é como perder um dedo ou um braço, ou quem sabe, um pedaço do coração ou do fígado ou dos pulmões. E deixar para trás é sempre doloroso. Porque esta parte nossa, nunca mais a reencontramos. Aquele lugar ficará vazio para sempre. Só que para existir poesia é preciso haver vazios; é preciso o silêncio e a ausência para brotar o novo.

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As flores do deserto do Atacama

desiertofloridoatacama1_thumbPerguntei a um viajante solitário o que tinha visto de mais lindo em sua última viagem, feita com pouquíssimos recursos civilizatórios, ao que ele respondeu, mais rápido que um foguete: “as flores do deserto do Atacama”.

Diante de sua resposta rápida, fiquei intrigada. Gostaria de saber o que havia deixado o meu interlocutor tão deslumbrado e por isso perguntei o que tinha de tão especial nestas flores, ao que ele me disse: “Elas nascem no meio do nada. Buscam água de onde podem, ou seja, da atmosfera, que é o único lugar onde este recurso existe lá. Aquilo é um mar de nada, e de repente, lá estão elas, lindas, perfeitas, em lugar absolutamente insólito à vida onde de dia faz quarenta graus e à noite, um frio abaixo de zero. Não é incrível isso? ”

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A sobriedade estética do amor

homem-caminhandoO amor que um ser humano deve buscar cultivar pelo outro – um analista por seu analisando, uma mãe ou pai por seu filho, um cônjuge por seu companheiro ou um amigo por outro – é sóbrio e deve ser capaz de comportar verdades humanas paradoxais e, por isso mesmo dolorosas. Quando isso é atingido, uma nova forma estética de viver é possível. Nesta estética, beleza e verdade se equivalem. A vida se torna bela porque verdadeira e toda a forma de mentira e hipocrisia é repudiada porque fere esta mesma busca estética pelo bem viver.

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Reflexões sobre o filme Na natureza selvagem

nns00Na natureza selvagem: o homem que caminha só em direção a si mesmo.

 A história verídica do norte-americano Christopher Johnson McCandless, encontrado morto aos 24 anos em um ônibus abandonado, próximo do Parque Nacional Denali depois de sobreviver com pouca comida e equipamento no Alasca selvagem, nos convida a reflexões importantes sobre o sentido último da vida humana.

Para os interessados em conhecê-la sugiro a leitura do livro “Na natureza selvagem”, publicado em 1992 pelo jornalista John Krakauer, bem como o filme escrito e dirigido por Sean Pean, de mesmo título, lançado em 2007.

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Sexualidade e erotismo em Sigmund Freud

images* Palestra proferida no dia 28 de março de 2016 no curso de Psicologia da UNAERP (Universidade de Ribeirão Preto), na disciplina Psicologia do Desenvolvimento Humano II, a convite da Profa. Me. Lilian de Almeida Guimarães.

Gostaria de começar minha fala de hoje com um trecho do romance “O homem sem qualidades” do escritor austríaco Robert Musil, escrito em 1931. Este livro foi considerado um dos maiores romances escritos no século XIX e penso que sua grandiosidade se deve ao fato de o autor ter conseguido captar a essência daquilo que viríamos chamar no século XX de “A era da técnica”.

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Habilidades necessárias para se exercer o ofício da psicanálise

imagem-curso-psicanaliseO título que escolhi para minha fala de hoje evoca, para mim, pelo menos dois pontos fundamentais que eu gostaria de refletir com vocês nesta manhã.

O primeiro e mais aparente é: o que é psicanálise e o que ela não é. Ora, se pensarmos que a prática da psicanálise se define pelo seu campo ético, o fazer-se psicanalista não pode vir desacoplado da práxis[1] de psicanalisar alguém. Dito isso, é fundamental que definamos em que consiste o método da psicanálise, diferenciando-o do de outras terapias. Para isso seguiremos o que nos diz Freud em seu sugestivo artigo intitulado “O método psicanalítico de Freud”, escrito em 1903, mas também o paralelo que ele estabelece em um artigo de 1904 entre as diferentes técnicas psicoterápicas.

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Ciclo de Palestras: Reflexões sobre o trabalho analítico na psicanálise contemporânea

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Nos dias 12 e 19 de março haverá um ciclo de palestras intitulado “O trabalho analítico na psicanálise contemporânea” organizado pelo Curso de Pós-Graduação em Psicoterapias de Abordagem Psicanalítica do Centro Universitário Barão de Mauá.

Os palestrantes

São profissionais com larga experiência clínica e acadêmica, mestres e doutores em Psicanálise bem como membros da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto. Além disso, todos eles integram o corpo docente do Curso de Pós-Graduação que está organizando o evento.

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A borboleta

maquina de escreverA borboleta se debatia contra o vidro e pequenas gotículas de sangue já escorriam de suas delicadas asas. A cena feriu seu coração. Ela precisava salvar a pobre borboleta. E foi então que começou a luta. Seus dedos finos e longos percorriam as asas da borboleta que fugia, assustadíssima, para o outro lado. A luta foi se intensificando até se transformar em um corpo-a-corpo. Ela suava, angustiadíssima. Será que ela não quer ser salva? Será que ser salvo não é bom? Talvez a borboleta esbelta estivesse exatamente fugindo da liberdade e por isso se trancafiara olhando o lindo jardim colorido através do vidro.

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