Identidade

maquina de escreverQualquer esforço em direção ao telefone era impossível para mim. Havia uma premonição tenebrosa se formando: a de que quanto mais eu caminhasse para o abismo, mais desgarrada e infiel aos padrões eu me tornaria. Uma revolta crepuscular queimava em meu peito e eu dizia a mim mesma:

Não. Não quero mais esta selvageria mentirosa. Todos estão doentes, verdes e desmantelados. Por que só eu percebo isso?

Minha única vontade era enrolar-me em mim, como caracol enegrecido, cauda junto de cabeça, pele junto de pele, até formar uma só coisa, um só nada. Até sumir.

Brotava em mim, de forma desenfreada, um puro desejo de não ser mais. Nada de telefonemas, de metáforas, de meios sorrisos, de olhares que se desencontram das palavras. Meu ser clamava pela verdade. Sem ela, me recuso agora a viver. O telefone olhava para mim, com ar impaciente. Precisava ligar para o banco, resolver pendências. É que eu havia perdido minha identidade e não sabia onde ela havia ido parar. O problema – e nisso residia grande parte da minha vergonha – eu havia sido descoberta em minha ausência de identidade pela linda moça do banco que, cheirosa e malévola, atendia sorridente aos clientes do dia.  Descobri que estava completamente sem identidade justo diante daquela linda moça. Fiquei estarrecida, envergonhadíssima. Ela, babando de prazer por ver minha dor e culpa, disse triunfante, para todo mundo ouvir:

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A menina e o cão

maquina de escreverA menina era tristonha e acanhada. Sentia impropriedade no fato de existir. Seu andar era como de gato, esgueirando pelos cantos. Certo dia, seu pai Josiberto trouxe a salvação: um belo labrador cor de mel. Pura inspiração. Seus olhos vivazes eram como uma humilhação para a menina tísica. Mas como que por desordem do destino tornaram-se unha e carne. Melhores amigos mesmo. Obviamente o cão dava por certo o fato de sua existência pacificada, bem instalada em seu corpo sólido e pouco conhecedor de si. Já a menina, instável na arte de amar, caiu doente, literalmente, de amor pelo nobre cão. Passou semanas se recompondo em sua cama, com o cão-fiel ao seu lado. Pobre menina. Ninguém havia ensinado a ela os perigos do amor!

Seu pai Josiberto e sua mãe Marina eram pessoas dotadas de coração, mas simples nas aquisições do sentir. Para eles, preto era preto e branco era branco. Sem mais conversações. E a menina, raptada pelas gradações subterrâneas do sentir, tinha fome de coração. Neste ritmo sonhador de ser, passava horas a fio olhando para o Nada, ao que sua mãe perguntada, meio enfezada:

O que é que tanto olha aí, menina? Vem me ajudar com a louça.

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Marina e o gato morto

 maquina de escreverMarina despiu-se em frente o espelho. Procurava suas próprias entranhas e vísceras. Enquanto fazia este gesto maquinal, fora invadida por uma cena infernal: Hugo, Marina e sua gata Frida deitados na cama. Três montes de vísceras, soltas no espaço. Presas somente por um invólucro fino e irresoluto de pele.

 – Sim, pensou Marina. Somos todos uns sacos de vísceras e órgãos caminhando por aí.

Acontece que na manhã do dia em que se descobrira vísceras e órgãos, Marina teve um encontro com a sinistra morte. Enquanto saia para o trabalho, ela topou com um gato duro e morto. O cheiro de carnes putrefatas já começava a impregnar toda a rua. Ela, com seu olhar sempre tão infantil e inaugural, sentou-se escondida do outro lado da calçada, atrás de uma árvore. Queria checar a reação das pessoas frente àquela cena abissal: um gato duro, morto, sendo comido pelos vermes. Marina permaneceu ali por horas. Transeuntes passavam e simplesmente negavam a existência morta do gato.

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Cinquenta tons de cinza: a perversão à luz da psicanálise.

imagesRecebi nos últimos meses alguns pedidos de leitores para que eu comentasse o filme lançado no início do ano “Cinquenta tons de cinza”, baseado no livro de mesmo nome. Confesso que não costumo fazer posts por encomenda, já que a motivação para a minha escrita nasce do desejo, de algo que eu vejo, leio ou escuto e que me intriga gerando uma espécie de “comichão interno” que só passa quando eu me ponho diante da tela do computador e deixo o meu inconsciente trabalhar. E dentro de mim não havia nenhum desejo de ver o filme ou de ler o livro. Mas, pensando um pouco melhor a respeito, fiquei curiosa para saber o que, neste filme, havia atraído tantas pessoas. Por isso decidi assisti-lo e averiguar o que seria capaz de comentar sobre ele.

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Homem: sal da terra.

downloadAs reflexões que farei a seguir se baseiam no documentário “Sal da Terra” (2015), produzido pelo cineasta Wim Wenders e por Juliano Ribeiro Salgado em comemoração aos quarenta anos de carreira do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.

Minha proposta é estabelecer um paralelo entre a experiência emocional vivida por Salgado, e que nós vamos conhecendo por meio do que ele escolhe fotografar, e o que acontece em um processo de análise. Em ambos os casos, penso que o que está em jogo não é a capacidade de ver, o que fazemos com o órgão do sentido (olho), mas a condição interna de se enxergar ou não aquilo que vemos.

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Colóquio Freud: Filosofia e Psicanálise na UFSCAR

downloadNos dias 12, 13 e 14 de maio acontecerá na Universidade Federal de São Carlos um interessante Colóquio sobre Freud: Filosofia e Psicanálise, que está sendo organizado pelo Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências.

Este evento é uma comemoração aos 100 anos da publicação dos escritos metapsicológicos freudianos.

Vejam a programação completa aqui:

O evento contará com participação de psicanalistas e filósofos, estudiosos incansáveis do pensamento freudiano.

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A angústia de envelhecer e o ódio do jovem com a velhice.

downloadCaro leitor, façamos um exercício imaginativo. Imagine esta cena:

Você está bem velhinho, talvez com 80 ou 90 anos de idade. Todo o seu corpo dói. Ele não responde mais aos seus comandos cerebrais. Você quer que sua perna se movimente rapidamente, mas ela é mais lenta que uma tartaruga. Sua visão é opaca e borrada. Não pode mais enxergar a beleza das flores ou o rosto do seu netinho com nitidez. A única memória que possui da beleza da vida são aquelas que lhe restaram dentro da cabeça, já bastante desmemoriada. Além de tudo, você está apavorado com a proximidade da morte: o maior temor de todos os seres humanos viventes. Ela está para chegar, e o mais terrível é que você não tem a menor ideia de quando ela virá: se hoje, amanhã ou no ano que vem. O seu estado de incerteza é absoluto. Sua audição está péssima. Sente-se o tempo todo mergulhado em uma piscina funda. Não pode mais ouvir o barulho da chuva ou o riso do seu neto ou o canto dos passarinhos, que sempre alegram o coração humano, mesmo daqueles mais amargurados com a vida.

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Pelo direito de sentir medo.

imagesEsta semana foi noticiada uma reportagem que eu achei bastante curiosa.

Colônias de férias de crianças estão sendo proibidas, pelos pais, de contarem estórias de medo. O argumento dado por eles, segundo a reportagem, é que este tipo de estória pode traumatizar ou amedrontar as crianças desnecessariamente. O curioso é que, na matéria, o discurso dos pais era corroborado por um dos donos da colônia, que disse:

– É um período de férias, de curtição. Então, a gente só deve falar de “coisas alto-astral, só coisas pra cima” (sic).

O que podemos pensar sobre isso?

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A morte é um borrão na natureza.

downloadEm “Os trabalhadores do mar”, de Vitor Hugo, diz o narrador sobre o desespero de Gilliatt, diante do risco de sua própria morte:

            O homem diante da noite reconhece-se incompleto. O céu negro é o homem cego. Com a noite o homem abate-se, ajoelha-se, arrasta-se para um buraco ou procura asas. Quase sempre quer fugir a essa presença informe do desconhecido. Pergunta: O que é; treme, curva-se, ignora; às vezes, quer ir lá. Todo o número é zero diante do infinito. Dessa contemplação solta-se um fenômeno sublime: o crescimento da alma pelo assombro. Mas, este prodígio universal não se realiza sem atritos e os atritos é o que chamamos de Mal. O Mal desconcerta a vida, que é uma lógica. Faz devorar a mosca pelo pássaro e o planeta pelo cometa. O Mal é um borrão na natureza.

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