Reflexões sobre a relação do terapeuta com o dinheiro

downloadMeu objetivo neste texto é elaborar algumas reflexões a respeito do fator monetário na relação terapêutica. Falando mais claramente minha proposta é refletir sobre o modo como o terapeuta lida com o fato de receber dinheiro para cuidar de seus pacientes e de como paga, ou não, o preço pelo gozo que isso lhe traz.

Partirei para tanto de uma primeira imagem, provocadora: um analista se encontra com seu paciente algumas vezes por semana, que podem ser três ou quatro. O paciente se deita em um divã e o analista se coloca o mais confortavelmente possível atrás dele. Ambos estarão envolvidos durante os cinquenta minutos de encontro em uma tarefa altamente libidinal (leia-se prazerosa): associar livremente.

Quem já viveu esta experiência, seja como paciente ou como analista, sabe a quão prazerosa pode ser uma sessão de análise sobretudo quando as catexias libidinais estão a serviço do trabalho, algo que costuma ocorrer em fases mais adiantadas do trabalho. Diante disso, pergunto: É pertinente estabelecer algum paralelo possível entre o que faz um analista com seu paciente e o que faz a prostituta com seu cliente?

Aqui façamos uma pausa.

O que faz a prostituta? Ela assume o seu gozo em fazer-se causa do desejo do outro, gozo pelo qual ela cobra um valor. Para o seu gozar, e o gozar do outro, empresta seu corpo por um tempo limitado. Penso que esta profissão, uma das mais antigas da humanidade, é condenada pela moralidade, exatamente porque nela a prostituta tenta realizar a totalidade do gozo sexual incestuoso com o qual o neurótico tanto sonha. Digo tenta porque a realização plena do desejo sexual é da ordem do impossível, embora no inconsciente todos nós ansiemos por ele.

Em termos mais simplistas: a prostituta realiza aquilo com o qual a dona de casa sonha à noite; sonho que lhe cobra um preço, se for neurótica – o de manter obstinadamente limpa e asseada sua casa, se tiver uma tendência à neurose obsessiva, ou, apaixonar-se castamente pelo novo padre da paróquia, caso tenha uma tendência à histeria. Em termos estruturais, a prostituta tenta realizar perversa ou psicoticamente aquilo com que o neurótico sonha.

Pois bem. E o psicanalista? Transferencialmente ele também não se empresta todo, ainda que temporariamente, para revestir-se da libido de seu paciente? Só que diferentemente da prostituta, se o psicanalista não é perverso ou psicótico (o que significaria ele vir a ter relações sexuais com seu paciente), ele empresta não o seu corpo, mas a sua mente.

Que mente é esta que ele empresta como modelo ao seu paciente? Diferentemente da prostituta, o analista sabe, uma vez tendo passado pela castração, que se deve abdicar da ilusão do gozo absoluto, pois isso significaria a morte do eu.  O prazer que ele propõe ao paciente é um prazer sublimado, parcial, que é o único possível ao ser humano inserido na cultura. Trata-se na análise, propriamente, do prazer da fala que representa o ingresso no mundo simbólico. É a isso que Freud se referiu quando dizia que a análise deve se passar em um clima de abstinência de ambos os lados.

O analista, diferentemente da prostituta, sabe-se castrado e, portanto, sabe o quanto é da ordem do impossível o gozo absoluto do qual ele abriu mão no passado, não sem relutância, para poder pertencer à cultura humana. E é este o convite que ele fará ao seu paciente.

Muitos pacientes se rebelarão contra isso, negarão sua condição de seres castrados, leia-se, condenados a terem que se satisfazer com prazeres parciais, sublimados, o que significa abrir mão do desejo absoluto e pleno que a criança imagina experimentar na relação sexual incestuosa. Em um texto belíssimo de 1937 chamado “Análise terminável e interminável” Freud concluiu ser este o grande obstáculo à cura da neurose: o paciente se aferrar firmemente à ilusão de tudo poder realizar, de gozar plenamente.

Mas, voltemos à questão do dinheiro. O que dinheiro tem a ver com gozo sexual? Tudo. Para a psicanálise, no inconsciente, o dinheiro é uma representação das fezes com as quais, no passado, a criança obteve seu quinhão de prazer anal retendo-as em seu intestino para depois soltá-las com violência e gozo.

Deriva desta associação que existe entre dinheiro e prazer sexual a premissa, fortemente endossada pela cultura, de que acumular dinheiro é pecado, é feio. Seria o mesmo que a criança obstinadamente querer reservar para si todo o prazer que sente com a retenção de suas fezes. O dizer bíblico “é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” penso que também remeta a esta significação. Por isso eu disse no início que o analista será chamado em seu ofício a responder ao gozo que obtém do benefício financeiro que lhe trazem seus pacientes, em troca do atendimento.

Sempre achei muito curioso como a temática do dinheiro é evitada nos currículos de graduação e pós-graduação. Não me lembro de ter tido um professor na universidade que eu sentia tratar com liberdade o fato de que psicólogos devem sim receber dinheiro em troca do trabalho que realizam. É como se ao se adotarmos esta premissa o trabalho perdesse sua “nobreza”, fosse uma espécie de prostituição.

 Parte-se, neste caso, de uma visão ingênua e idealizada da figura do terapeuta que, como um bom filantropo, humildemente dedica-se ao bem do pobre paciente, situação que revela um vínculo assentado em poder e submissão. Acho que nós profissionais da área psi ganharíamos muito mais se pudéssemos fazer uma análise profunda e corajosa das motivações mais inconscientes que nos levam à querem “cuidar” do outro. Mais revolucionário ainda seria se pudéssemos, humildemente, reconhecer que em muitas situações clínicas, se não em todas, o benefício terapêutico do contato com o paciente é igual, senão maior, para nós do que para ele. Afinal, o terapeuta que nunca esteve às voltas com uma questão pessoal que pôde ser melhor compreendida enquanto o seu paciente associava sobre o mesmo problema, que atire a primeira pedra.

Talvez parte do sentimento culposo que ganhar dinheiro neste ofício pode provocar em algumas situações derive exatamente daí. Acabo de me lembrar que certa vez ouvi um músico dizer que ficava muito envergonhado por fazer algo que lhe dava tanto prazer e ainda por cima ganhar dinheiro com isso, situação que revela o quanto a mente humana é frágil para conter sentimentos prazerosos e de gozo.

Obviamente que se se fica numa relação parcial com o dinheiro (o dinheiro pelo dinheiro), isso é motivo de análise. Acumular pelo simples prazer de acumular pode significar, no analista, que houve uma fixação ainda não devidamente elaborada nas vivências anais. Mas não é disso que estou falando. Estou falando que o dinheiro proporciona, na sociedade em que vivemos, muitas experiências prazerosas. Viajar, comer bem, morar em um lugar bacana, ir ao cinema e ao teatro; tudo isso e muito mais que o dinheiro pode proporcionar.

Então, penso que a questão de base pode ser a dificuldade do profissional em assumir-se como alguém que goza com aquilo que o dinheiro lhe proporciona, algo que, como sabemos, faz despertar aspectos invejosos e superegóicos da própria mente e da mente dos outros.

Por outro lado, acredito que pode ser uma perda muito grande para a dupla se o analista, por não ser capaz de sustentar em si as turbulências emocionais derivadas deste gozo.

Levando a hipótese de que este tipo de negação, no analista, pode provocar na dupla sentimentos de assepsia e de esterilidade, com tendência ao paciente idealizar o terapeuta como uma pessoa que não come, não defeca, não precisa de dinheiro, não faz sexo e, finalmente, não morre porque tampouco está vivo.

Espero ter atingindo o meu objetivo neste texto e refletido sobre o quanto falar o mais aberta e honestamente possível de dinheiro com nossos pacientes pode ser salutar em uma relação de análise. Afinal de contas, tudo o que o paciente mais necessita é sentir que está na sala com outro ser humano.

2 comentários em “Reflexões sobre a relação do terapeuta com o dinheiro”

  1. Fiquei com uma dúvida aqui. Faz algum tempo que estou fazendo análise e sinto que o tratamento está caro demais. Sempre soube que seria caro mas foi aumentando e aumentando. Tenho um analista muito bom e gosto bastante dele. Mas sinto que em muitos momentos da minha vida eu tenho tido dificuldades para ter opçoes de lazer justamente por causa do custo da analise. Nao consigo coprar roupas novas, ir viajar, fazer cursos de que gostaria justamente porque todo o meu dinheiro é quase que todo investido neste tratamento. Penso que isso esta funcionando um pouco terapeuticamente errado pois como eu vou abrir espaço para sublimaçao, ideias criativas e prazerosas se meu proprio analista nao me deixa? E outra questao que eu fiquei curiosa… neste texto voce fala de analistas que se sentiriam meio que culpados por receber e tal. Penso que meu analista está totalmente confortavel com essa ideia e isso me toca de uma forma bem delicada. Ao inves de idealiza-lo como citado no fim do texto, sinto uma certa raiva, na verdade. Cada vez que eu pago essa sessao carerrima fico imaginando as coisas que eu poderia estar fazendo e as coisas que ele vai fazer com meu dinheiro… Voce nao acha que nesse sentido talvez o manejo desta transferencia esteja sendo um pouco negativa? Acho que meu analista errou no preço… Acredito que o preço da analise deva ser como que o preço simbolico do sintoma, no meu caso acredito que esta mais caro. Qual a sua opiniao sobre essas questoes?

    1. Beatriz, boa tarde. Em primeiro lugar, sugiro que você discuta estes seus sentimentos e dúvidas com diretamente com seu analista. Quanto mais abertamente expuser a ele, com a maior franqueza e honestidade que puder ter, este seu desconforto com relação ao valor que paga a ele, mais fundo vocês poderão ir na análise. É claro que isso exige muita coragem, de ambos os lados: da sua parte de ser absolutamente honesta, com ele, mas sobretudo com você mesma; e da parte dele, de ouvir esta sua queixa e trabalha-lá de um modo analiticamente correto. Em linhas gerais, o que posso te dizer é que o caro e o barato em uma análise é muito relativo. Quando uma pessoa está angustiada e faz uma boa sessão de análise frequentemente ela sente que o que ela paga financeiramente é pouco perto do benefício que retira da análise. De outro modo, quando sentimentos como este que você me traz estão ficando de fora da sala de análise, é comum que o paciente sinta que a análise não está funcionando e por isso tem desejo de parar e fica pensando no que poderia gastar todo aquele dinheiro que paga ao analista. Por isso é muito importante que você converse sobre o que está sentindo com ele: para que possam conversar sobre o fundamental que são os seus sentimentos e desconfianças com relação a ele. Só assim haverá uma chance de vocês continuarem o trabalho e de você vir a desenvolver ao máximo suas potencialidades. E quem sabe até um dia ter condição interna para suportar ganhar tanto ou até mais que o que você imagina que o seu analista ganha. Abraços e boa sorte.

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