Pudor e hipocrisia no casamento conjugal moderno: reflexões à luz do pensamento de Simone de Beauvoir.

Uma mulher insatisfeita sexualmente com seu marido que ligasse a rádio na década de 80 e ouvisse a parada pop de sucesso “Amante profissional” (da banda Herva Doce) ver-se-ia seriamente tentada a contratar o serviço.

Na irreverente música o tal amante profissional é descrito como um homem alto, moreno, bonito, carinhoso e sensual, capaz de realizar a fantasia da mulher insatisfeita sexualmente por meio de um relacionamento íntimo e discreto e sem qualquer compromisso emocional.

A cena faz apelo (e sucesso) porque joga com a insatisfação da mulher com aquilo que ela tinha em casa, ou seja, o marido. O amante profissional, alto, moreno, bonito, carinhoso e sensual, é quase sempre o contrário do que era o marido da realidade: por vezes baixo, calvo, já com o abdômen avantajado e largado por anos da prática da cerveja e do exercício tipo controle remoto, estúpido e grosseiro e nem um pouco romântico com o avançar dos anos de casamento, se é que fora um dia.

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O homem forte

Qual a marca fundamental de um ser humano forte? O que é que se reconhece exatamente como sendo a força de uma pessoa?

Freud nos ajuda a pensar sobre isso.

Nas “Cinco lições de psicanálise” (1905) ele diz textualmente que um homem enérgico e vencedor é aquele que, pelo próprio esforço, consegue transformar em realidade seus castelos no ar.

Mas o que exatamente ele quer dizer com isso? O que seriam estes tais castelos que, no homem forte, são erguidos a partir do nada, do ar e que derivam de uma conjunção feliz entre circunstâncias externas favoráveis (Freud nunca deixou de considerar o elemento sorte) e de uma força interna descomunal?

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Amar o humano em cada homem

O poeta e escritor D. W. Lawrence trabalha com uma ideia, resgatada da filosofia, muito interessante àqueles que gostam de exercitar o pensamento.

Diz ele que a forma de amor mais elevada é aquela em que somos capazes de amar e tratar com dignidade e respeito a cada ser humano em particular porque nele está contida a humanidade inteira.

Acabo de fazer uma linda viagem em que pude sentir e vivenciar o que propõe Lawrence. Conheci e conversei com muita gente nesta viagem; ouvi histórias dramáticas e lindas; enxerguei sonhos e frustrações; vi beleza e feiura de espírito; encantei-me com um homem corajoso e viúvo que viaja só em busca de experiências estéticas; emocionei-me com um humilde e nobre pescador preocupado em cuidar do lixo de sua comunidade; conheci pessoas generosas que me trataram com acolhimento e calor humano; também enxerguei olhares perdidos, gente confusa e atormentada; gente raivosa e sem brilho nos olhos.

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Minhas primeiras jabuticabas

Que feliz aprendizado estou tendo ao poder cuidar de meu jardim e observar o ritmo próprio da natureza. Tenho me impressionado ao pensar como o cuidado das plantas e a observação atenta do ritmo da Terra podem ser uma rica metáfora da própria vida e de como devemos buscar vivê-la.

Mudamos para nossa casa no mês de maio deste ano e iniciamos nossa jornada nela com um difícil e árido outono. Neste momento, as plantas recém-plantadas e, portanto, ainda muito frágeis, começavam a perder suas folhas, em um processo que parecia de destruição, mas que, no fundo eu sabia ser de renovação. Enfrentando uma dura estiagem, lembro-me de como me senti exigida em minha capacidade de espera pela realidade inóspita porque meus olhos me levavam a crer que aquelas plantas não iriam sobreviver, por mais água que lhe déssemos.

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Hoje estou de luto.

Hoje estou de luto por alguns de meus vizinhos que, perplexos, me perguntaram por que eu chorava se minha casa estava protegida do incêndio que devorou por dois dias ininterruptos a mata e matou milhares de vidas mais honestas que a nossa.

Estou de luto pela falta de paixão de algumas das pessoas vestidas de vermelho que foram enviadas para nos ajudar, mas que se mostraram terrivelmente presas nas malhas da inércia. Desalmadas e carcomidas no ser por um salário miserável e por um Município que não as valoriza como salvadoras que em tese são, mostraram-me o quão triste é um coração sem alma, desacreditado de sua própria importância no mundo.

Estou de luto por aqueles que conseguiram chegar em casa após um dia de trabalho e ligar a TV mesmo com labaredas enormes devastando a vida e empesteando o ar a alguns metros de suas lindas e envidraçadas janelas.

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Crônica de um casal quase moderno

O casal unido há quase vinte anos, com uma convivência tão satisfatória quanto pode ser a convivência entre dois seres humanos, acaba de ter uma relação sexual.

Com o auxílio de um vibrador, a esposa chega ao orgasmo e com isso se sente animada para continuar aproveitando a penetração. Satisfaz-se de novo. Terminado o jogo erótico, levantam-se, banham-se e vão à cozinha. Há uma louça a ser lavada e como um bom casal quase moderno, que divide todas as contas da casa igualmente, a esposa, entre ingênua e curiosa, pergunta:

– Quem vai lavar a louça hoje? Eu ou você?

– Você. Eu te fiz gozar…

Silêncio magoado e constrangido.

– Eu também te fiz gozar. Então, você lava a louça hoje!

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As flores do deserto do Atacama

desiertofloridoatacama1_thumbPerguntei a um viajante solitário o que tinha visto de mais lindo em sua última viagem, feita com pouquíssimos recursos civilizatórios, ao que ele respondeu, mais rápido que um foguete: “as flores do deserto do Atacama”.

Diante de sua resposta rápida, fiquei intrigada. Gostaria de saber o que havia deixado o meu interlocutor tão deslumbrado e por isso perguntei o que tinha de tão especial nestas flores, ao que ele me disse: “Elas nascem no meio do nada. Buscam água de onde podem, ou seja, da atmosfera, que é o único lugar onde este recurso existe lá. Aquilo é um mar de nada, e de repente, lá estão elas, lindas, perfeitas, em lugar absolutamente insólito à vida onde de dia faz quarenta graus e à noite, um frio abaixo de zero. Não é incrível isso? ”

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A sobriedade estética do amor

homem-caminhandoO amor que um ser humano deve buscar cultivar pelo outro – um analista por seu analisando, uma mãe ou pai por seu filho, um cônjuge por seu companheiro ou um amigo por outro – é sóbrio e deve ser capaz de comportar verdades humanas paradoxais e, por isso mesmo dolorosas. Quando isso é atingido, uma nova forma estética de viver é possível. Nesta estética, beleza e verdade se equivalem. A vida se torna bela porque verdadeira e toda a forma de mentira e hipocrisia é repudiada porque fere esta mesma busca estética pelo bem viver.

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Reflexões sobre a relação do terapeuta com o dinheiro

downloadMeu objetivo neste texto é elaborar algumas reflexões a respeito do fator monetário na relação terapêutica. Falando mais claramente minha proposta é refletir sobre o modo como o terapeuta lida com o fato de receber dinheiro para cuidar de seus pacientes e de como paga, ou não, o preço pelo gozo que isso lhe traz.

Partirei para tanto de uma primeira imagem, provocadora: um analista se encontra com seu paciente algumas vezes por semana, que podem ser três ou quatro. O paciente se deita em um divã e o analista se coloca o mais confortavelmente possível atrás dele. Ambos estarão envolvidos durante os cinquenta minutos de encontro em uma tarefa altamente libidinal (leia-se prazerosa): associar livremente.

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Não se adoece mentalmente por estresse! Contribuições de Freud para o entendimento do padecer mental

download (9)Meu objetivo neste texto é problematizar uma concepção recorrente: a de que causas banais e atuais da vida quotidiana provocam o que em psicanálise chamamos de neuroses e outras desordens mentais.

Uma pessoa procura um analista e lhe diz na entrevista, quando indagada sobre o que ela pensa a respeito das motivações que a fizeram produzir determinados sintomas, que é por causa do estresse no trabalho ou por algum trauma vivido recentemente, ou ainda, por um dissabor no trabalho ou no casamento ou a perda de um ente querido.

O que o analista pensa disso?

Ele pensa que esta pessoa está somente parcialmente do lado da verdade. Vejamos o porquê.

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