Bate-papo sobre literatura e sobre o divã no dia a dia, no programa Edmo Bernardes

Recentemente fui convidada a participar do estimulante programa “Diálogo com Edmo Bernardes”, junto dos escritores Dr. Nelson Jacinto e Ely Vieitiz.

Foi uma experiência muito agradável e estimulante, pois o espírito do nosso encontro realmente fez juz à proposta do programa, que é a de ser um diálogo entre os participantes.

Neste espírito de cordialidade e de acolhimento, nossa proposta foi pensarmos juntos sobre a importância da leitura na formação profunda do ser humano, em seus aspectos sociais, culturais, de sua consciência histórica e enquanto sujeito implicado com sua própria vida. Também conversamos sobre os desencontros que se dão entre o leitor e a leitura, em seus vários vértices.

Neste aspecto, foram citadas questões estruturais do nosso país, tais como a falta de incentivo ao hábito da leitura, a dificuldade que o jovem passa a ter no sentido de compreender em profundidade um texto – questão que se alinhava à precariedade da formação educacional – bem como o desencontro entre o desejo de aprender, que é inerente ao humano, e aquilo que é oferecido pelas instituições educacionais.

Caso queira assistir ao programa na íntegra, veja abaixo: .

Por acreditar que, conforme disse Sartre, “compreender uma palavra é se transformar”, vi-me motivada a continuar pensando sobre o tema da leitura e de como determinados livros podem transformar radicalmente nossa forma de enxergar a nós mesmos e ao mundo que nos cerca, desde que tenhamos abertura para isso.

E aqui, obviamente, não me refiro somente à literatura, mas a qualquer grande obra que tenha sido escrita com um espírito de profunda investigação e curiosidade viva sobre as questões humanas, que nos irmanam a todos.

Imersa nestas reflexões e, estimulada pela participação no programa e pelas falas dos meus colegas, resolvi tentar sistematizar o meu pensamento neste texto, a partir das seguintes indagações:

1)      O que sente uma pessoa quando se deixa penetrar pela leitura de algo que ela julga significativo e de alto valor estético?

2)      Por que esta penetração, que deve ocorrer entre o leitor e a obra a que ele se dedica no momento, pode não acontecer?

Neste aspecto não tratarei das questões da carência educacional que, como sabemos, realmente pode impedir uma pessoa de compreender o que lê – situação que, aliás, é mantida para que as pessoas continuem ignorantes e sem capacidade para questionar o que precisa ser questionado!

Mas, para além desta questão, será que todo impedimento de compreender e de se deixar penetrar por um texto pode ser explicado por este vértice?

Para tentar responder a estas questões, buscarei minhas primeiras referências associativas na obra “O nome da Rosa” de Humberto Eco. Nesta narrativa, alguns livros “proibidos”, sobretudo a Poética de Aristóteles, que versava, entre outras coisas, sobre o humor, foram trancafiados em uma biblioteca porque os ensinamentos ali contidos representavam perigo para a Igreja. A tal ponto que as pessoas que tiveram contato com as obras estavam sendo misteriosamente assassinadas. Quando o autor e mandante dos crimes foi indagado sobre porque tinha tanto medo daquelas obras, ele respondeu: “O riso mata o medo e sem medo não há fé!”.

É um enunciado chocante. Sem medo, não há fé! E sem fé, não há controle. Há, ao contrário, um sentimento interno de liberdade para se pensar e se indagar aquilo que for preciso.

É por isso que Freud e Marx revolucionaram a forma do homem pensar a si mesmo. Marx, por um lado, chamou a atenção para o fato de que quase tudo o que pensamos, julgamos ou acreditamos não foi necessariamente criado por nós em um ato de liberdade, mas é fruto da ideologia de uma época. Ou seja, foram ideias criadas visando-se o controle de um grupo humano sobre o outro.

Freud, por outro lado, chamou a atenção para o fato de que esta submissão também ocorre dentro do indivíduo. Só que neste caso não se trata da submissão de um grupo humano a outro, mas de uma instância psíquica sobre a outra. Ou seja, até Freud o homem julgava que era o seu ego ou a sua consciência que escolhia o que ele queria fazer, pensar ou ser.

Investigando profundamente o psiquismo de seus pacientes e o seu próprio, Freud descobre que não é a consciência que define as escolhas humanas, mas sim o inconsciente (que mais tarde ele chamou de id). Neste caso, quando o inconsciente humano está sob a égide de potentes forças repressivas que impedem, portanto, o acesso destes conteúdos à consciência, o sujeito permanece condenado a repetir determinados padrões de conduta, derivados do inconsciente, sem que ele se dê conta disso.

E é exatamente aí que se dá o processo de submissão: o sujeito fica submetido à ação do inconsciente reprimido, que não pode ser conhecido, embora julgue que suas ações são feitas de forma livre pelo seu consciente ou por sua vontade racional.

Interpretando a obra de Eco de uma perspectiva psicanalítica, o sujeito fica impedido de entrar em contato com conhecimentos que ele próprio internamente serem proibidos e perigosos.

Ou seja, a partir destes dois pensadores, passamos a observar que as proibições dirigidas ao conhecimento das Verdades humanas atacam por duas frentes distintas: atacam desde fora, por meio das instituições sociais que perpetuam a ignorância nas pessoas para continuarem no poder e desde dentro, por meio das instâncias psíquicas que confundem a verdade do sujeito (vinda do inconsciente) com crenças falsas, construídas a partir da consciência.

Notem, portanto, que a tarefa daquele que se encoraja a conhecer um pouco além daquilo que já foi dito a ele ou do que ele pensa sobre si mesmo não é nem um pouco fácil.

 Para ir um pouco além e penetrar nas “bibliotecas” que guardam livros / pensamentos inconscientes proibidos e revolucionários, o homem tem que ter muita, muita coragem.

A metáfora que Eco propõe em sua obra – a biblioteca proibida e a morte de quem ousa ter acesso a ela – pode ser remetida tanto ao âmbito social, ou seja, ao controle e dominação que a Igreja e, hoje, o poder econômico exerceram e exercem sobre as pessoas, de modo a deixá-las com bastante medo e dóceis, mas também a uma perspectiva interna, que é a que mais interessa à psicanálise.

O recado, nesse caso, é o seguinte: se você for um pouco além e se questionar sobre o que não pode ser questionado, você será morto! É com este tipo de angústia, catastrófica, que aqueles que têm a coragem suficiente para enxergarem um pouco além têm que se a ver.

O sentimento de catástrofe é duplo: primeiro porque uma vez questionando aquilo que quase ninguém questiona, o sujeito tem que se confrontar com o seu sentimento de desamparo já que, uma vez se diferenciando do seu grupo (familiar, educacional, etc.), ele perde a segurança que estes espaços representam e tem que pensar por si próprio; segundo porque o contato com ideias novas e o necessário questionamento de ideias antigas e conhecidas traz ao sujeito um sentimento incômodo de que tudo está fora do lugar, de que o novo ainda não foi solidificado, mas que também o velho já foi derrubado. Novamente, ele ingressa em zonas de desamparo e de solidão radical.

Portanto, o que quero dizer é que há uma dupla pressão para que não nos deixemos penetrar por pensamentos novos: a pressão social e a pressão interna.

Por outro lado, quando se tem coragem para ir em frente, podemos abandonar a nossa posição infantil (medo e fé) e ingressarmos no mundo adulto da racionalidade (prazer em se perguntar). Neste mundo, o medo é substituído pelo espírito de coragem – a coragem de fazer perguntas. Por isso Nietzsche dizia que “a veracidade é um luxo”. É preciso competência para se viver em contato com as nossas verdades mais profundas.

Só para vocês terem ideia de como isso que estou falando é sério e de como se perguntar e perguntar aos outros sobre suas próprias crenças é e sempre foi um ato perigoso, cito a vocês a situação delicadíssima do filósofo Sócrates, no século V a. C.

 Ele saia pelas ruas de Atenas indagando às pessoas e a si mesmo sobre seus dogmas e verdades: O que é o amor? O que é a morte? O que é vida? Nesta ocasião, os governantes da época começaram a julgar que Sócrates estava querendo instalar o caos e estimular as pessoas a se rebelarem contra o governo e por isso ele foi condenado a tomar cicuta, ou seja, a se matar. Questionado sobre porque não se defendeu das acusações, ele disse: “se eu me defender, posso ser absolvido, mas serei proibido de filosofar. Neste caso, eu prefiro a morte a deixar de fazer minhas perguntas!”.

Então, retomando minha questão, o que sente um homem ao se deixar penetrar por uma obra ou por um pensamento novo?

Sente um incomensurável prazer, exatamente como Sócrates devia sentir. Mas, para poder acessar o prazer ele necessitará ser corajoso o suficiente para confrontar-se com os perigos reais que a sua nova posição questionadora necessariamente lhe trará. Também deverá ser bastante corajoso para romper com as resistências naturais que sua mente lhe apresenta no sentido de se deixar penetrar pelo novo. Há ainda outra questão: ele necessita sentir-se autorizado a viver com prazer, sem culpas. Este é, aliás, um dos grandes entraves psíquicos que o homem encontra no ato de conhecer e de sentir prazer em sua investigação do mundo – suas culpas inconscientes.

Neste sentido, Freud correlacionou todas as ações humanas à libido (pulsão sexual), em sua forma direta ou sublimada. Isso significa dizer que mesmo a mais inocente investigação filosófica ou científica tem suas raízes no desejo libidinal. Dito de outro modo: o filósofo, o poeta, o escritor, o pintor, o escultor, o cientista extraem prazer máximo de suas tarefas laborais porque estas tarefas estão investidas libidinalmente.

Ou seja, o prazer que sentem ao realizarem suas tarefas é o mesmo que sentiriam em uma relação sexual, por exemplo, embora neste caso o prazer compareça de uma forma sublimada, ou seja, transformada. Neste caso, se uma pessoa está impedida internamente de sentir prazer, ela não conseguirá extrair o máximo prazer de qualquer atividade que venha a realizar – e isso inclui a leitura e o prazer de conhecer algo novo.

E, para finalizar, há ainda outro motivo que pode paralisar o processo de aprendizado e compreensão de um texto: a incômoda percepção de que nós não sabemos aquilo que está sendo transmitido pelo autor em sua obra. Ou seja, para aprendermos algo novo temos que entrar em contato com a nossa real ignorância e com o fato de que sabemos menos do que aquele que escreveu ou estudou determinado assunto.

Refiro-me aqui aos sentimentos de inveja que o contato com alguém que efetivamente sabe mais sobre determinado assunto pode provocar em mentes que estão mais dominadas pelos impulsos de morte que de vida. Movidos por um sentimento de inveja e de ódio pela condição de saber menos que o outro, alguns seres humanos podem fazer como alguns bebês que, diante da percepção de uma mãe generosa que lhe oferece o leite nutritivo, fecham a boca e não ingere nada que não seja criado por eles mesmos. Este é, em suma, outro motivo inconsciente que pode fazer com que um ser humano tenha muita dificuldade para aprender algo com outro ser humano, que saiba mais do que ele.

Como vocês puderam ver, há inúmeros entraves que podem impedir um ser humano de ter uma relação visceral com seus livros e autores e de realmente aprender algo com eles. Dentre estes, citei: 1) a pressão social para que o humano continue cego e ignorante, para não ser trabalhoso; 2) o enfrentamento de vivências catastróficas que o novo gera; 3) o sentimento de culpa inconsciente impedindo a pessoa de sentir prazer; 4) impacto do sentimento de inveja e de ódio por estar diante de alguém que sabe mais sobre determinado assunto.

Por outro lado, aprender algo novo a cada dia, sentir-se nutrido por livros, conversas e encontros é fundamental para a saúde mental do ser humano. Aliás, a meu ver, grande parte da desagregação social que vivemos hoje se deve à ausência de espaços para a criação / gestação de pensamentos verdadeiros. Aliás, esta é uma das propostas mais radicais e revolucionárias trazidas pela psicanálise – a criação, a partir de um setting estruturado, de um lugar de conversas verdadeiras, que é o que acontece em uma análise.

Em suma, espero profundamente que possamos criar e recriar cotidianamente estes espaços de pensamento, com resistência e coragem, tal como gentilmente faz Edmo em seu estimulante programa, a quem eu agradeço por ter contribuído com o estímulo inicial, para que estas minhas reflexões pudessem nascer.

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