Rito selvagem

maquina de escreverEla caminhava em direção ao mar sem saber o que a movia. Alguém que a visse naquela tarde chuvosa, com seus cabelos ensebados teria pena.

Mas não era pena o que ela queria do mundo. O que ela queria era sentir horror e a única forma de chegar a isso era se tornar um ser medonho de unhas sujas e verdes.

O mar também a lembrava de seu próprio pai que morrera anos antes, um exímio nadador, mais peixe que humano.

Tomada por um gesto inconsciente, ela caminhava em direção a ele. Queria se lembrar de quem nunca havia se esquecido.

Em um átimo de pensamento, ela dissera a si mesma que só se pode esquecer aquilo que se guarda bem dentro.

Animada por este pensamento promissor a respeito da sua própria situação, que a princípio parecia catastrófica, ela ganhou novas forças e começou a correr.

Tinha pressa de ir ao infinito das águas. Não. Não é que ela quisesse morrer. O que ela queria era morrer naquilo que ela vinha sendo para renascer outra, de alma expandida, brilhante e morna como uma linda tarde de sol.

Ela amava incondicionalmente a vida e por isso pensava tanto na morte. Para ela, de um jeito difícil de explicar, a morte vinha antes da vida; a vida era uma morte sendo, só que de uma forma bem lenta e bem cálida. Tão lenta e tão cálida que quem fosse corajoso o suficiente poderia vislumbrar todo o milagre do mundo sendo carregado pelas patas frágeis de uma borboleta.

Ela estava atenta para isso e ao contrário de seu pai, que brutalizara o processo, ela queria deixar-se ir. Ser capaz de enxergar tanta beleza e tanta dor.

Depois de correr com suas pernas frágeis, ela finalmente atingira o mar. Sentia seus pés imergirem na água gelada e viscosa. Depois seus joelhos, sua cintura, seus seios, seus braços, seus cabelos ensebados, seus olhos marejados, seu crânio.

Pronto.

Agora ela estava imersa na água viscosa. Era útero mais uma vez. Tudo ali era silencioso e eterno.

Depois, era preciso fazer o caminho de volta, mas ela não queria. Queria ficar ali naquele limbo do não tempo ainda um pouco mais; prolongar aquele estado de não ser o mais que pudesse.

Mas não teve forças. Era humana. Não peixe. Não sabia respirar em baixo da água. Lá, naquele sinistro abissal ela não poderia estar por muito tempo; não sem correr o risco de se esquecer, para sempre, do caminho de volta.

E foi então que, pacificada consigo mesma, ela decidiu retornar. Voltou cautelosamente para fora do útero, num nascimento ao contrário. Primeiro o crânio ainda um pouco tonto, os ouvidos, a boca, o pescoço, as mãos, os braços frágeis e seu ventre que nunca poderia parir exceto a si mesma.

Agora ela estava toda fora, toda exposta. Era invólucro pronto a ser preenchido novamente de luz.

E neste estado emancipado, renascido de si mesma, deitou-se exausta do processo na areia úmida da praia, fechou seus olhos e deixou-se secar ao sol.

Neste ritual primitivo, sonhou.

Pela primeira vez na vida, sonhou com o seu pai.

2 comentários em “Rito selvagem”

  1. De mulher “embrutecida” a sujeito capaz de sonhar… Me fez pensar no trabalho clinico do analista, pois muitas vezes só depois de muito tempo e de muitos mergulhos em águas viscosas o paciente é capaz de relatar um sonho…tornando-se assim mais proximo de si mesmo e mais humanizado. Lindo texto.

    1. Lenice, muito interessante sua associação entre este texto e o que se dá em um processo analítico. A mulher “embrutecida” me pensar nos elementos beta (elementos brutos, vivências que ainda não puderam ser metabolizadas, sonhadas) descritos pelo psicanalista Bion. A partir da narrativa onírica do texto-sonho, podemos ver a transformação de elementos beta, embrutecidos, que enlouquecem a personagem, em elementos alfa, sonháveis. Ou seja, aquilo que antes era identificação com o pai-embrutecido-enlouquecido, pôde ser metabolizado por meio do sonho da personagem com o pai, algo que só pode ser realizado depois que ela se suporta mergulhar no caos do inconsciente. Todo o problema do crescimento psíquico consiste nisso: para se poder sonhar, é preciso mergulhar no caos e suportar estar lá, no limiar entre a vida e a morte, entre o ser e o não ser. Para mim, a arte só faz sentido quando brota deste caos. O artista dá-se todo neste processo perigoso e sublime, que pode levá-lo ao enlouquecimento. Está sempre, portanto, caminhando na beira do abismo. Beijo grande e obrigada pelas suas contribuições.

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