O Humanismo de Thomas Mann em “Doutor Fausto”

Foi preciso vencer um forte ímpeto de reverência interior para conseguir escrever sobre Thomas Mann. Acabo de ler Doutor Fausto e o impacto estético que a obra teve sobre mim, à semelhança da A Montanha Mágica, foi enorme. 

Mann trabalhou nesta obra entre 1943 e 1947, já exilado nos Estados Unidos, propondo-se a refletir através dela sobre a ascensão do nazismo e a degeneração da cultura alemã.

Nela, o narrador Serenus Zeitblom incumbe-se da difícil tarefa de biografar a vida de seu grande amigo e ídolo, que conheceu ainda criança, o genial compositor Adrian Leverkühn que, a certa altura, fará um pacto com o demônio (pacto fáustico) para transcender em suas criações musicais. 

Os sentimentos de Serenus por Adrian são dúbios, pois ao mesmo tempo em que ele o idealiza e se orgulha de ter um amigo tão acima das necessidades comezinhas humanas, também teme por seu futuro, dada a frieza e indiferença de Adrian com todos, conflito de sentimentos que só sentimos por pessoas que amamos muito. 

Mann delineia, portanto, as delicadezas e idiossincrasias de uma verdadeira adoração que Serenus nutre por Adrian, o que pode até mesmo levar o leitor a concluir sobre a existência de uma forte e platônica ligação homoerótica daquele pelo amigo, como provam os sentimentos de ciúme e posse que Serenus muitas vezes experimentava em relação a ele.

Interessante sublinhar sobre isso que a forte impressão erótica causada por um rapaz nos anos escolares já aparece em A Montanha Mágica, onde Hans Castorp desenvolve uma paixão platônica por um colega de escola, que irá se reatualizar anos mais tarde na paixão por Clawdia Chauchat, figura que faz Hans relembrar, por alguns traço específicos, o amigo adorado da infância. 

Filia 

Penso que o que Mann retrata nestas relações tão eróticas e belas, mais do que o homoerotismo em si, é o próprio sentido de filia grego, que é o estado de adoração e verdadeira paixão que algumas amizades são capazes de despertar em nós, e que nos deixam reminscências por toda a vida. 

Tais amores raros talvez sejam, neste aspecto, os mais perfeitos que possam existir, pois unem amizade e paixão erótica num mesmo ser, conforme Luca Guadagnino retratou tão belamente em seu filme “Me chame pelo seu nome” (2018). 

Mas somente pessoas sensíveis como Serenus e Castorp, humanistas no sentido preciso do termo, poderiam ser capazes de se abrir para viverem experiências como estas. 

Nesse sentido, penso que Serenus é na obra de Mann, o representante do profundo humanismo do autor, conforme podemos ver nesta bela defesa que Serenus faz em relação à dignidade, força e beleza dos homens frente à gélida indiferença do Universo para com eles:

“A imensidão horrenda da criação física não contribui em nada para o sentimento religioso. Só o transcendente mistério do homem e sua soberba consciência de que ele não é apenas uma criatura meramente biológica, mas, ao contrário, pertence com uma parte decisiva do seu ser a um mundo espiritual, da mesma forma que lhe foi dado o absoluto com seus conceitos de verdade, liberdade e justiça. Nessa reverência que o homem sente para consigo é que existe Deus. Não posso encontrá-lo em bilhões de Vias Lácteas.”

Trata-se aqui de uma belíssima declaração de amor aos homens, pois somos a única espécie capaz de compreendermos conceitos abstratos como verdade, liberdade e justiça e, portanto, de criarmos Deus. Mas também de sofrermos e amarmos.  

A levar-se em conta que Mann devia estar muito desiludido com os descaminhos de sua amada Alemanhã e com a destruição de tudo o que de mais belo e sagrado sua cultura representava, penso que ele precisou escrever esta obra extraordinária para refazer intimamente seu amor aos homens e à sua amada pátria, que a ascensão do nazismo tinha devastado perigosamente dentro dele. 

Vejo confirmada esta minha hipótese na última frase que Serenus diz depois de ter ido, pela última vez, visitar seu amigo, agora perdido para sempre para a loucura: “Que Deus tenha misericórdia da vossa pobre alma, meu amigo, minha pátria.”, o que significa que, para Serenus, seu amigo era, de fato, sua última e derradeira pátria. 

Sobre o que ocorria à sua volta, em termos políticos e sociais, Serenus procurava manter-se sóbrio, apesar dos horrores que testemunhava e, com enorme lucidez dirá a certa altura que, afinal, é “preciso inspirar confiança no mundo ao invés de instigar suas paixões”. 

Fascismos

Ao contrário disso, os fascismos de toda ordem, cuja origem Mann denuncia tornando o seu Fausto tão atual, operam na contramão disso, instigando as paixões destruidoras que habitam o interior dos homens. 

Nesse sentido, são proféticas as passagens em que Serenus nos descreve as discussões travadas no círculo intelectual ocorridas na casa de Sixtus Kridwiss, ocasião que o fez emagrecer mais de quatorze libras ouvindo, entre encantado e aterrorizado, as sombrias previsões que o grupo fazia para o futuro:

“surgirão forças míticas destinadas a desenfrear e ativar as forças políticas, à maneira dos primitivos gritos de guerra. A razão e a ciência serão inócuas para combater essas ficções; todas as instâncias do pensamento não farão mais do que reafirmar a legitimidade desse mito. Os homens serão apenas uma modulação da força dessa ficção e cada um deles não fará outra coisa senão se acrescentar à massa objetificada e coisificada. A linguagem se tornará guardiã dessa ficção, pois ela será responsável pela imposição dos limites das significações.”

Impossível encontrarmos uma descrição mais precisa e sombria do que essa para os nossos tempos atuais, e de cuja longínqua deterioração, como nos mostra Mann, a Grande Guerra foi só o primeiro sinal. 

O compositor Adrian Leverkühn

Adrian é um personagem denso que desperta no leitor ora exasperação, pela sua soberba e alheamento dos homens, ora temor, porque intuímos, sem saber muito bem porquê, que ele caminha para a própria ruína, e não há nada que se possa fazer a respeito.  

Nesse aspecto, penso que Adrian simboliza no romance a ideia da fortuna, sorte ou destino (Túkhe grega) , no sentido profundo do termo, a saber, o lugar para o qual os homens caminham, quase sempre às cegas, perspectiva humana trágica que Freud busca traduzir em seu conceito de Inconsciente. 

Adrian é, nesse sentido, o próprio destino alemão pensado por Mann, caminhando para a própria ruína sem poder parar. 

Um exemplo disso é a tentativa fracassada de Adrian em pedir a mão da jovem Marie Godeau, que ele o faz solicitando a intermediação do amigo Rudolf Schwerdtfeger, violinista mulherengo, e que termina com Rudolf o traindo e se casando, ele próprio, com Marie. 

Horrorizado com a traição, que será um golpe fatal para Adrian, Serenus se indaga se teria sido pura ingenuidade do amigo, ou necessidade involuntária auto-expiação, o que teria levado Adrian a agir tão descuidadamente em relação a si, o fato sendo que nunca saberemos, pois, como dizia Pascal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece.” 

Esta é uma visão madura da vida que problematiza a ideia bastante pueril de que o destino de um homem está sempre em suas mãos, e que sua racionalidade é tão somente a que o guia em tudo. 

Um homem dionisíaco

Adrian, portanto, encarna no romance o homem dionisíaco que arrisca tudo no campo da sua arte, vindo a pagar um preço altíssimo por isso. Mas, como sempre me lembram alguns pacientes, a gente sempre paga um preço por ser quem se é… 

Mas Mann parece insinuar no romance que há mais salvação para quem se arrisca, do que para quem calcula e controla milimetricamente sua existência, buscando mostrar, através de Adrian, que a graça só se dá na iminência do desastre. 

Tal raciocínio reevoca algo muito estranho ao homem moderno, que ilusória e arrogantemente julga ter tudo sob o seu controle, mas que está, por exemplo, muito presente nos mitos do Velho Testamento.

Deus ordena que Abraão mate seu filho

Cita-se um exemplo disso quando Deus leva Abraão ao extremo do limite, ordenando-lhe que matasse o seu filho, só para no último momento liberá-lo, no que se vê uma prova radical de fé, em nome da qual um homem deve estar disposto a perder tudo. 

Na contramão disso, o homem moderno é um homem vazio, entediado e sem fé, pois não há mais nada, ou quase nada, pelo que ele aceitaria morrer. 

Assim, Mann parece considerar que o homem medíocre, ou seja, aquele que mede e calcula cada mínimo passo de sua vida, terá menos valor aos olhos de Deus do que o que arrisca tudo e se lança inteiro no jogo da vida, tal como fez o Caim bíblico, e o próprio Adrian:

“A mediocridade não tem nenhum status teológico. Uma pecaminosidade tão desgraçada que deixa o homem perder quaisquer esperanças na graça (Caim) é o verdadeiro caminho teológico para levá-lo à salvação.” 

Isso talvez explique o alheamento e a indiferença de Adrian com os homens, como se ele estivesse sempre se preparando para um vôo maior e mais ousado em um lugar alhures,  o que significava que sua fome pelo extraordinário nunca pudesse se preencher nas relações comezinhas e tediosas entre os homens. Interpretação que parece fazer sentido na medida em que Mann se inspirou no filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche para criar Adrian. 

Assim, foi seu descontentamento com o cinza e o tedioso da vida e a ânsia de criar algo verdadeiramente novo no campo da composição musical, parece-me, sua motivação central para pactuar com o Demônio, a partir do que ele irá conseguir, às custas de muito sofrimento físico e angústia, criar o dodecafonismo. 

Vínculos humanos

Mas, Mann também parece insinuar que não há salvação fora dos vínculos humanos, o que Adrian vem a experimentar, talvez pela primeira vez, com a chegada do sobrinho Nepumuk, carinhosamente chamado por todos de Nepo ou Echo, que ele recebe por um tempo em sua casa, em virtude de uma doença da irmã, sendo que, para mim, esta é uma das partes mais tocantes do romance. 

Ocorre que infelizmente o menininho vem a contrair meningite e tem uma morte pavorosa, o que significará para Adrian, a perda definitiva da “solução” para os homens, a saber,  sua esperança no amor e na felicidade. Excruciado em profunda dor, dirá ele ao amigo após a morte do sobrinho:

“ – Achei a solução. Aquilo não deve existir. (…) O bom e o nobre, aquilo que qualificamos de humano, embora seja bom e nobre. Aquilo por cuja causa os homens têm lutado e têm tomado bastilhas de assalto; aquilo cuja glória os extáticos proclamam jubilosamente; aquilo não deve existir. Será revogado. Eu o revogarei.” 

Após esta perda trágica, Adrian terminará de se identificar para sempre com a figura do homem maldito e desgraçado, a saber, aquele a quem o destino abandonou à completa falta de graça e má sorte, que ele próprio interpretará como sendo uma punição pelo pacto que fez com o Mal. 

As mães

Assim, a obra termina com Adrian completamente inválido e inconsciente de si mesmo, sendo cuidado pela mãe, descrição que desperta no leitor uma compaixão profunda, pela perspectiva de quanta vida e potencial se perderam com o apagamento para sempre daquele homem extraordinário. 

Agora quem cuidará até o fim de Adrian será sua mãe, que Serenus percebe ter ficado muito feliz por recuperar o filho de volta, já que Adrian nunca foi afetivo com os pais. Este reencontro forçado com a mãe pela doença de Adrian fará Serenus refletir ao mesmo tempo sobre a dor das mães cujos filhos as rechaçam, mas também sobre a crueldade envolvida neste amor possessivo, onde a mãe preferirá o filho doente mas perto dela, ao invés de longe, mas saudável:

Para a mãe, o voo de Ícaro executado pelo filho heróico, a ousada aventura viril do rebento que se subtraiu à sua guarda, representam, no fundo, uma aberração tão pecaminosa quanto incompreensível, na qual, secretamente melindrada, ela sempre perceberá aquela atitude dura que nas palavras, “Mulher, que tenho eu contigo?”, revela a profundeza do estranhamento; mas, oferecendo o perdão total, reacolherá em seu seio o derribado, o aniquilado, “a pobre, querida criança”, persuadida de que seria melhor se esta jamais se tivesse separado dela”. 

Não penso em absoluto que todas as mães sejam assim, embora é verdade que muitas delas se ressintam profundamente dos filhos que a deixam para trás, para cuidar da própria vida.  

Já no fim do romance, a mãe de Adrian consegue evitar uma tentativa de suicídio do filho, que na visão de Serenus teria sido sua última busca desesperada por liberdade, o que ele lamenta ela ter intervido:

“Nem tudo o que se comete num estado de insânia carece ser estorvado, e o dever de conservar uma vida humana foi cumprido nesse caso unicamente no interesse da mãe e de mais ninguém, pois a mãe prefere certamente reencontrar um filho inconsciente em vez de um defunto” 

Novamente vê-se aqui um valor profundamente humanista ser evocado pelo autor, para quem a vida sem liberdade não faz qualquer sentido.  

A posição de Jesus

Ainda sobre esta posição radical de Serenus em relação à progenitura, lembrei-me que esta também foi a posição adotada por Jesus, onde ele renegou algumas vezes seus pais e irmãos de sangue, visando uma ampliação radical do conceito de família. 

Cito um exemplo desta posição profundamente anti-familista de Jesus no Evangelho de Lucas, onde Joana, grávida, faz um elogio efusivo à mãe de Jesus, dizendo:

feliz o ventre que te trouxe e os peitos que te amamentaram. Gerar um filho é a melhor benção de Deus. Mulheres existem para serem mães”, 

Ao que ele retruca, irritado:

Mais felizes aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática”, tendo percebido que a fala de Joana era bastante preconceituosa e patriarcal e, portanto, nada amorosa com os diferentes dela. 

Também sobre isso, em outra ocasião, Jesus disse:

“Não vim trazer paz, mas espada. Vim separar filho do pai, filha da mãe, nora da sogra. Por vezes, tereis como inimigos os próprios familiares”

E finalmente, em outra ocasião na qual uma pessoa queria segui-lo, mas antes precisava antes enterrar o pai, para quem ele respondeu:

“Deixai que os mortos enterrem seus mortos”, diz Jesus. “Vinde anunciar o reino.” 

Interpreto este radicalismo de Jesus, que pode hoje ser chocante ao homem moderno, como ele querendo ensinar aos homens que esta vida terrena é ilusória e vã, sendo que a única e verdadeira vida é a espiritual, para a qual cada homem deve em algum momento nascer. 

Palavras finais

Doutor Fausto de Thomas Mann é uma obra clássica, profunda, densa e perturbadora em muitos aspectos, sendo um livro que deve ser lido e relido muitas e muitas vezes na vida. 

Tentei nestas páginas elencar algumas das reflexões que sua leitura evocou em mim, mas seu conteúdo humano é tão denso e profundo, que seria impossível esgotá-lo numa única vida, sendo este o valor imaterial de uma obra clássica. 

Espero com estas linhas instigar em outros leitores interesse e, quem sabe, o mesmo amor que sinto pela obra deste extraordinário escritor que foi Paul Thomas Mann. 

* Para quem se interessar em aprofundar sua leitura sobre livro, sugiro a interessantíssima tese de Diego Rogério Ramos, “Os lamentos da Razão – Mito e História em Doutor Fausto de Thomas Mann”, que você pode acessar aqui.

Há também o livro que Mann escreveu sobre a gênese do romance, “A gênese do Doutor Fausto – Romance sobre um Romance”, publicado em 1949.

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