Uma leitura obrigatória para todo psicoterapeuta em alguma fase da vida

Foi por acaso que cheguei ao livro “A Descoberta do Inconsciente: história e evolução da psiquiatria dinâmica”, publicado em 1970 pelo psiquiatra e historiador franco-canadense Henri Frédéric Ellenberger. E eis que me deparo com uma obra monumental e de inestimável envergadura na minha área.

Ler as quase mil páginas de “A Descoberta do Inconsciente” expandiu muitas coisas em mim. 

Primeiro, fez-me conhecer uma grave lacuna na minha formação como psicóloga, pois ignorava por completo a historiografia e as origens remotas do meu próprio trabalho.

 Assim, costuma-se erroneamente ensinar nas Universidades que foram homens como Charcot, Freud e Jung os iniciadores da psicoterapia, o que Ellenberger demonstra ser um grave erro histórico, pois a psicoterapia já vinha se desenvolvendo, através de homens como  Johann Joseph Gassner e Franz Anton Mesmer, desde 1775. 

Para ser mais exata sobre isso, a primeira cura primitiva de uma afecção mental de que se tem relato, foi descrita pelo antropólogo alemão Adolf Bastian em 1890, conforme ele testemunhou sendo realizada por um pajé, numa tribo da Guiana. 

Nesse aspecto, ler Ellenberger foi como conhecer pela primeira vez meus bisavós e tataravós de profissão, e ampliar o conhecimento da minha ascendência para além dos meus grandes mestres. 

Apagamento das origens

O motivo para tal apagamento da história na psiquiatria dinâmica, conforme mostra Ellenberger, é que, ao contrário das ciências físicas, a psiquiatria dinâmica não teve uma evolução linear. Assim, muitas das coisas que foram descobertas numa certa fase, foram simplesmente negadas pelos pesquisadores da fase seguinte, conforme se vê, por exemplo, no grave erro de Freud em considerar que o método catártico era invenção sua quando, na verdade, Pierre Janet já o vinha desenvolvendo há muito tempo. 

Nesse sentido, o livro de Ellenberger tem a inestimável importância de fazer uma reparação à propriedade intelectual de homens brilhantes e sóbrios que foram simplesmente apagados da historiografia oficial. 

A propósito, sobre isso Ellenberger propõe que a decisão sobre qual autor será laureado e qual será esquecido numa dada época depende de coisas como a personalidade dos autores em questão e as preferências e os embates de uma dada época pelas ideias em voga. 

Assim, explica Ellenberger, autores como Pierre Janet e Adler não fizeram tanto sucesso na ocasião, pois eram representantes de um iluminismo tardio, ao passo que Freud e Jung, retomavam conceitos da velha psiquiatria romântica, ideais estes mais compatíveis ao gosto da época. 

Nesse sentido, foi muito iluminador para mim enxergar que a história do meu campo de trabalho foi consolidada em ondas e, porque não dizer até mesmo em modismos, ora predominando o iluminismo, ora o organicismo, ora o romantismo. O que explica a existência de tantas “escolas” díspares na psicologia. 

Uma outra riqueza do livro de Ellenberger é sua capacidade de mostrar ao leitor como foram as condições históricas, econômicas e o espírito de uma dada época que propiciaram o surgimento ou ressurgimento de determinadas ideias na psiquiatria dinâmica, as coisas estando sempre mais ligadas do que imaginamos. Daí a importância, a meu ver, do psicólogo ser uma pessoa culta e bem instruída em campos que vão muito além da sua área. 

Psicólogos das profundezas

Outro ponto de destaque no livro para mim foi o reconhecimento mais profundo de que todos estes psicólogos das profundezas, desde o exorcista e padre Gassner, passando pelo reverendo Oskar Pfister, o magnetizador Mesmer, o marquês de Puységur, os hipnotizadores Jean Martin Charcot e Auguste Ambroise Liébeault e tantos outros que não teria condições de citar aqui, estiveram desde o início envolvidos e lutando com misteriosas forças mentais que faziam seus pacientes falarem outras línguas, apresentarem múltiplas personalidades, entrarem em hipnose profunda e desenvolverem graves contágios psíquicos, tudo isso causando  por vezes sofrimento mental no próprio médico que tentava curá-los. Risco de profissão que todo psicoterapeuta experimentado conhece bem. 

Vejo isso como um alerta já que tentar psicoterapizar pacientes sem uma sólida formação prévia, significa evocar forças mentais perigosas tanto para o paciente quanto para o psicoterapeuta, uma vez que o poder de sugestionabilidade da mente humana é brutal.

Assim, se a cura das almas foi se tornando mais sofisticada e científica com o tempo, passando do exorcismo e da confissão dos pecados à cura pela fala no divã, isso não significa que deixamos de lidar com as mesmas forças obscuras da mente humana, da qual ainda seguimos conhecendo muito pouco.

Fim da leitura

Terminei o livro de Ellenberger sentindo um misto de coisas. Vazio e tristeza por tê-lo terminado, já que sua leitura, apesar de densa é muito prazerosa e instigante, mas também com vontade de me debruçar e estudar a fundo estes meus bisavós e tataravós, a quem agora percebo que devo muito. Um deles que pretendo estudar é Pierra Janet à quem Freud parece dever muito.

Outra consequência desta leitura é que, como psicanalista, oriunda direta da psiquiatria e da filosofia romântica, Ellenberger aguçou em mim o desejo de me debruçar sobre outros autores românticos além de Freud, sendo eles Schelling, von Schubert, Ignaz Paul Vital Troxler, Carl Gustav Carus, Arthur Schopenhauer, Eduard von Hartmann , Gustav Theodor Fechner e Johann Jakob Bachofen. 

Pois, para se fazer justiça, é a tais autores que devemos atribuir a descoberta do inconsciente. 

Termino também o livro de Ellenberger admirando ainda mais Freud e nutrindo uma admiração incipiente por outro autor que desconheço por completo, Carl Gustav Jung. Pois, segundo ele, Freud e Jung foram os únicos desta grande linhagem que arriscaram tudo, sua própria psiquê e sua sanidade mental, em nome de sua obra, num processo que Ellenberger chamou de afecção criativa. 

De Freud, podemos conhecer um pouco do enorme sofrimento mental vivido por ele em sua afecção criativa, através das cartas enviadas ao amigo e médico Wilhelm Fliess entre 1887 e 1904, reunidas e publicadas por Jeffrey Moussaieff Masson em 1986.

Esta consiste num estado de grave adoecimento psíquico pelo qual passam determinados descobridores antes de descobrirem algo realmente colossal. Penso sobre isso na coragem que ambos tiveram que ter ter, o que idealmente deveria ser também o propósito de uma análise didática: o analisando podendo adoecer a tal ponto de si mesmo, que a sua cura correspondesse à aquisição de um novo olhar, convicto e profundo, sobre si e sobre a vida. Mas talvez isso seja pedir demais.

Considerações finais

A leitura do livro de Ellenberger me fez sentir alegria por fazer parte, ainda que ínfima, desta grande linhagem de homens que se propuseram a estudar e tratar a insondável mente humana. Além disso, ampliou-se enormemente em mim a dívida simbólica com meus ascendentes espirituais, já que aprendi com ele, de uma maneira muito elegante, que cada estudioso é tão somente um continuador de muitos outros que o antecederam. 

A partir do que nos mostra Ellenberger, penso que também seria providencial que os cursos de Graduação em Psicologia pudessem ensinar uma historiagrafia mais completa das origens da psicoterapia aos alunos, fazendo juz a autores que, apesar de menos famosos, são tão importantes quanto. Apagamento curricular grave que acaba por formar psicoterapeutas bastante mal informados e repetidores de informações falsas.

Mas isso não significa que o livro seja interessante só aos psicólogos, podendo agradar qualquer leitor curioso e sagaz interessado nas questões da mente.

Por fim, Ellenberger me fez sentir algo que Sócrates já sabia, a saber, o quão estimulante é se saber ignorante de tudo o que ainda há para se estudar nesta vida.

*Agradeço em especial ao pesquisador Flávio F. Fontes, professor adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que me colocou pela primeira vez em contato com a obra de Henri Frédéric Ellengerger, enviando-me dois artigos do autor sobre a vida da paciente Berta Pappeheim.

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