Neste feriado fiz algo que me deixou muito emocionada. Visitei a casa que a mãe de Thomas Mann nasceu, em Paraty. O casarão do século XVIII é lindo e imponente, envolvido, de um lado, pela exuberante Mata Atlântica e, de outro, por um mar translúcido e calmo verde-esmeralda.
Júlia da Silva Bruhns (1851-1923) viveu ali até os sete anos e, após sua mãe, Maria Senhorinha da Silva, ter morrido em um parto, emigrou com o pai, o abastado fazendeiro alemão Johann Ludwig Hermann Bruhns e seus irmãos para a Alemanha, de onde nunca mais voltou.
Na Alemanhã, Júlia se casou aos dezessete anos com Thomas Johann Heinrich Mann, na ocasião com vinte e nove anos, e teve com ele cinco filhos: Heinrich, Thomas, Julia, Carla e Viktor, sendo que o caçula chegou a escrever sobre a infância da mãe no Brasil.
Aqui, a menina Júlia era conhecida como Dodô e vê-se seu veio literário, herdado pelos dois filhos, Heinrich e Thomas, em seu livro autobiográfico “Da infância de Dodô”, publicado em 1903, onde ela narra seus primeiros anos vividos “na selva, ao lado do Oceano Atlântico, ao Sul do Equador, entre macacos e papagaios”.
Imagino que ela tenha tido uma infância muito feliz ali, repleta de experiências sensoriais e estéticas, em meio à bichos, plantas, banhos de mar e paisagens luxuriantes.
Marca psíquica materna que depois talvez Thomas Mann irá desenvolver e ampliar em personagens como Hans Castorp, o engenheiro “à paisana”, que ama a beleza e a natureza, e experimenta, no cume da Montanha, o inenarrável prazer de chegar ao âmago das coisas.
Há, de fato, em vários personagens de Thomas Mann, como no próprio Castorp, e no inesquecível Thomas Buddenbrook, de “Os Buddenbrook – decadência duma família”, um desassossego interior que bem pode ter sido também o de Dodô. A tal ponto sabemos que a nostalgia de deixar a terra natal pode provocar em nós.
Afinal, teria ela saudades de sua terra natal? Lembrar-se-ia por vezes de sua língua materna, o português com que aprendeu a falar? E que marcas aquelas paisagens luxuriantes da costa brasileira teriam deixado em seu coração?
Não tenho respostas para isso. Mas o que eu sei é que, tendo estado ali, pude ver a menina Dodô perseguindo os pássaros, mergulhando no mar e com medo das cobras. E senti uma gratidão enorme por esta mulher ter trazido ao mundo um escritor que, a mim, não sei nem dizer de quantas maneiras marca a minha vida.
A propósito, a escritora portuguesa Teolinda Gersão lançou em 2021 o livro “O retorno de Júlia Mann a Paraty”, obra na qual o título se serve de uma licença poética, já que Júlia efetivamente nunca voltou ao Brasil.
Relação de Thomas Mann com o Brasil
Sobre a relação de Thomas Mann com o Brasil, em um artigo publicado no caderno cultura do Estado de Minas, Gustavo Werneck, que também esteve no antigo casarão em 2022, recupera uma carta trocada entre Thomas Mann e Karl Lustig-Prean em 8 de abril de 1943, publicada no livro “A família de Thomas Mann e o Brasil” (2013), no qual o escritor fala sobre o Brasil:
“Cedo soou em meus ouvidos o louvor de sua beleza, pois minha mãe veio de lá, era uma filha da terra brasileira; e o que ela me contou sobre essa terra e sua gente foram as primeiras coisas que ouvi sobre o mundo estrangeiro. Também sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma certa corpulência desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda não tenha visitado o Brasil. A perda da minha terra pátria (‘mein vaterland’) deveria constituir uma razão a mais para que eu conhecesse minha terra mátria (‘mein mutterland’). Ainda chegará essa hora, espero.”
Felizmente, desde que Werneck esteve lá em 2022 até o momento, pelo menos o casarão foi restaurado por fora, e estava em melhores condições do que quando ele o visitou. Mas ainda há muito que poderia ser feito em termos da preservação histórica de um lugar tão importante em termos memorialísticos para o país.
Preservação histórica
Este era o intento do neto de Thomas Mann, o escritor Frido Mann, que visitou várias vezes o casarão e tinha interesse de instalar ali a Casa Mann, para guardar a memória da família, o que até o momento ainda não se realizou.
Escutei de alguns moradores da marina do Engenho ser uma pena aquele casarão lindo estar fechado, sugerindo que ali poderia ser um restaurante ou algo do tipo. O que, a meu ver, seria uma imensa tragédia, pois é assim que se apaga a história.
Mas há tantas condições para alguém poder amar e reconhecer o valor artístico de um escritor da envergadura de Mann, que não se pode exigir muito das pessoas.
Afinal, amar os livros e reconhecer o valor de um clássico, ter sensibilidade estética e vida interior, gostar de personagens bem construídos e complexos, e saber valorizar o que a meu ver é um ponto forte em Mann, que é o olhar sagaz de seus narradores, não é algo que se encontre com frequência nas pessoas comuns.
Isso talvez explique a sensação de imenso conforto e identificação que senti estando lá.
Como se ali, na companhia de Dodô, e de seu filho Thomas, mas também na de Hans Castorp, Clawdia Chauchat, Joachim, Settembrini, Krokowski, Naptha, Dr. Behrens e Marusja, e outros tantos personagens maravilhosos que ele criou, eu me sentisse por alguns instantes um pouco menos só.
Segue um vídeo e mais algumas fotos que tirei do casarão
Gostei muito do seu texto e publiquei um comentário no seu vídeo no Youtube. Vi também no seu canal que você trabalha com brasileiros que moram no exterior. Mais algo em comum entre nós, além da admiração por Thomas Mann. Sou professora de alemão para, entre outros, brasileiros e brasileiras que moram na Alemanha. Grande abraço.