Amar o humano em cada homem

O poeta e escritor D. W. Lawrence trabalha com uma ideia, resgatada da filosofia, muito interessante àqueles que gostam de exercitar o pensamento.

Diz ele que a forma de amor mais elevada é aquela em que somos capazes de amar e tratar com dignidade e respeito a cada ser humano em particular porque nele está contida a humanidade inteira.

Acabo de fazer uma linda viagem em que pude sentir e vivenciar o que propõe Lawrence. Conheci e conversei com muita gente nesta viagem; ouvi histórias dramáticas e lindas; enxerguei sonhos e frustrações; vi beleza e feiura de espírito; encantei-me com um homem corajoso e viúvo que viaja só em busca de experiências estéticas; emocionei-me com um humilde e nobre pescador preocupado em cuidar do lixo de sua comunidade; conheci pessoas generosas que me trataram com acolhimento e calor humano; também enxerguei olhares perdidos, gente confusa e atormentada; gente raivosa e sem brilho nos olhos.

Emocionei-me com a generosidade de milhares de desconhecidos que tocaram minhas mãos durante o percurso da São Silvestre e que, eu sentia, torciam genuinamente por mim. Lembro-me particularmente do olhar brilhante de um garotinho que estendeu sua pequena mãozinha enquanto eu passava, e que me olhava com admiração e respeito, coisas que só se pode sentir quando se tem um nobre coração. Nesta experiência da prova senti que carregava comigo, rumo à linha de chegada, a difícil missão de manter vivo o sonho de esperança de todas aquelas pessoas que saíram de suas casas na manhã de um domingo chuvoso do último dia do ano para compartilharem comigo seus melhores sentimentos.

Nesta viagem vi muita simplicidade material acompanhada de nobreza de espírito; também vi o oposto: abundância material e falta de verdade no espírito; conheci pessoas de olhar translúcido em que a alma se apalpa e se revela com generosidade e sem medo; conheci outras ressabiadas, desconfiadas e temerosas; conheci um ex-durissimo militar que nunca se recuperou de ter sujado suas mãos com sangue alheio, embora ele não saiba que carrega esta dor dilacerante no peito; encantei-me com sua linda esposa, mulher sofrida e marcada por uma tradição machista, e que encontrou na maternidade sua única forma de expressão no mundo. De alma lutadora, esta mulher simples e generosa, nascida na mais terrível miséria, conseguiu formar “doutoras” suas duas filhas, ainda que isso lhe custe doses insuportáveis de saudades.

Mais do que a lembrança de belas paisagens naturais, trouxe desta vez em minha bagagem de memórias o olhar de cada um destes seres humanos fantásticos que se abriram generosamente para mim. Amei em cada um deles a humanidade inteira, da qual me apiedei, por mim e por eles.

Pois não importa se habitamos um palácio ou uma casa de tapera; estamos todos submetidos à mesma condição desamparada neste mundão-de-meu-deus. Todos nós sentimos fome e frio, medo e desamparo; temos necessidade de sonho e de coisas que nos façam sentido; todos nos emocionamos com a bondade e com um sorriso aberto e caloroso vindo de outro ser humano. Não importa onde estejamos, que sobrenome tenhamos, ansiamos todos por sermos tratados com amor, respeito e dignidade. O que quero dizer é que, se o conforto material que o avanço da sociedade nos proporciona é importante e deve ser desfrutado, ele não pode nos deixar perder de vista os verdadeiros valores da vida.

Antes de sair de férias, vivi uma experiência muito tristonha e que serve de contraponto ao que proponho aqui. Descrevo-a não para fazer o papel de juiz acusador, mas simplesmente para mostrar como é fácil para o homem sério da ciência (categoria na qual o psicanalista facilmente se insere) defender-se de sua condição humana através de seu arsenal de saberes e de sua posição social privilegiada.

Estava em uma farmácia e presenciei o modo distante, frio e arrogante com que uma pessoa que trabalha com psicanálise na cidade tratou os funcionários que lhe atenderam. Vestida impecavelmente, do alto de seu salto alto e de sua bolsa de grife, protegida do suor calorento da humanidade por seu sofisticado arsenal de conhecimentos psicanalíticos, que pretensamente a colocam em uma posição superior, esta pessoa, por cansaço, arrogância ou dor, não conseguiu naquele instante sustentar docilidade e gentileza de coração para com aqueles que lhe atendiam e que, é bem possível, sentissem todo o distanciamento frio daquela figura imponente.

A perigosa dissociação entre o saber e a humildade pode levar a este tipo de situação desastrosa na qual a pessoa dotada de um saber privilegiado cai vítima da arrogância e passa a se considerar superior aos outros seres humanos. Um antídoto contra este tipo de armadilha é podermos relembrar a bela citação bíblica que diz que “a quem muito é dado, muito será exigido”. Costumo interpretar esta citação considerando que se à mim foram dadas maiores chances pela vida de me instruir e de me desenvolver como ser humano, isso me torna mais responsável por ser tolerante, compassiva e terna com aqueles que não tiveram a mesma sorte que eu. Sim, pois, a vida é uma equação complicada de talento e sorte… Nós não somos aquilo que queremos ser, mas aquilo que podemos ser, dadas as nossas condições genéticas e psíquicas herdadas!

Por outro lado, amar o humano em cada homem e sentir compaixão por nossa condição miserável (embora também grandiosa) não significa tudo desculpar e tudo compreender.

A proposta é mais singela e mais dura que isso. Trata-se de, como certa vez colocou Nietzsche, fazer do nosso coração um pequeno oásis em que os portões estejam sempre entreabertos para aqueles que desejarem se arejar e se reabastecer do poeirento e difícil caminho da vida. Como se constrói este oásis? Com amor e com verdade.

Um olhar amistoso e vibrante, um sorriso singelo e cortês, um silêncio prenhe de compreensão e de verdade; tudo isso faz construir o oásis. Lá o homem nu e descalço; aquele que só viaja com o que realmente lhe é necessário será sempre bem-vindo e encontrará companhia; lá aquele que sabe fazer vibrar as notas do seu coração, ecoando lindas melodias ao luar, e que sabe dançar com sensualidade e calor, sem moralismos nem meias-verdades, poderá sempre entrar. Juntos, eles irão dançar freneticamente a dança da vida, que escapa sempre por entre os dedos, e que por isso mesmo é mágica. Dançando, eles suarão juntos e ficarão descabelados, porque há mais sabor de verdade no desalinho dos fios do que nas madeixas engomadas da soberba.

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