A coragem nossa de cada dia

downloadVocê já percebeu como ousar realizar um sonho pode ser muito perigoso para nós, seres humanos?

Experimente contar que você está realizando um sonho há muito acalentado para ver a reação que irá provocar nas pessoas. A miríade de possibilidades é imensa. Algumas dirão que todo o sacrifício que você está fazendo em prol deste sonho não vale a pena.

Afinal – se o sonho a ser realizado for a compra de um terreno ou de uma casa, por exemplo – você tem filhos, constrói uma casa imensa. Para que? Indagam os amargurados. Depois eles crescem, casam-se e partem. Depois, o que resta é só você e o seu marido (algo que normalmente é dito em tom de desprezo por algumas mulheres, como se o marido fizesse parte do entulho que sobrou junto com a casa enorme!).

 Ouvindo isso eu imediatamente me pergunto: Mas, uma casa não deveria servir para o nosso próprio prazer? Para que a unidade do ser humano, ou seja, o par possa gozar de seus momentos de intimidade juntos e consigo mesmos? Na minha casa imaginária, eu já imagino um lindo e imenso jardim com pés de jabuticabas. Em dias ensolarados, colocarei, bem ao lado do meu marido (pode ser que já estejamos velhinhos, não importa) uma cadeira confortável e me espreguiçarei ao sol, em um domingo qualquer, de um ano qualquer. Lerei Guimarães Rosa enquanto ele se especializa em seus esportes favoritos, que pode ser corrida ou natação. Juntos, ouviremos uma linda música clássica, que pode ser Bach ou Mozart. Não é isso que é felicidade? Filhos, se vierem, devem mais é partir mesmo, preferencialmente entre os dezoito e vinte anos. Sua partida será a prova máxima de que fizemos um bom trabalho em conjunto, eu e meu companheiro. E no final, estaremos a sós, cada um fazendo companhia a si mesmo e ao outro, com nossos gatos, nossos livros, nossas músicas, nossos poucos e fiéis amigos…

Outros, tomados por uma inveja terrível, colocarão milhares de defeitos no seu sonho ou, então – o que é pior – mal terminarão de te ouvir falar para contar, ele próprio, seu sonho e para reafirmar, categoricamente, como este lhe saiu caro, não deu certo ou muito lhe causou frustração.

Ah, como são raras as pessoas que tem a nobreza de fazer companhia a seus próprios sonhos e aos sonhos alheios. Respeitá-los como se fossem pequenas pérolas ou pétalas de rosa, delicadas, miraculosas, frágeis, e muito, muito especiais.

Pois, sem sonhos não somos nada mais do que pó. Matéria morta perambulando pela vida como zumbis. Eu não quero deixar nunca de acalentar meus pequenos-grandes sonhos e de partir em busca de cada um deles. Quando deixar de pulsar pelos meus desejos, de sentir frio na barriga diante de cada plateia nova, de vibrar com cada novo projeto, diante de cada nova página em branco, prefiro a morte.

Só que para sonhar e acalentar os nossos sonhos-bebês é preciso muita dose de coragem, pois facilmente nós os deixamos mofarem, estragarem, azedarem. Isso acontece porque, para haver condição interna de sonhar (que é o mesmo que desejar e arcar com o custo do próprio desejo) é preciso haver condição de hospedarmos, dentro de nós próprios, uma miríade de sentimentos que o desconhecido provoca. O que quero dizer é o seguinte: quando ficamos no conhecido, ou seja, somente falando sobre os nossos sonhos e desejos sem nunca ter a coragem de concretizá-los, de realiza-los, estamos em terreno conhecido. O reclamar, o se queixar é conhecido e tolerável para a mente, por mais paradoxal que isso pareça.

Mas, quando acalentamos um sonho e o levamos a sério; quando buscamos concretizar um desejo, um anseio, um sonho há muito acalentado, temos que nos a ver com uma série de sentimentos incômodos que a situação desconhecida provoca. Primeiro porque não sabemos se vamos conseguir realizar aquilo ou não. Segundo porque, caso consigamos, temos que suportar entrar em contato com o sucesso, algo que costuma provocar muita turbulência na mente uma vez que evoca sentimentos invejosos, tanto na pessoa que se realiza quanto naqueles que estão a sua volta.

Esta é uma máxima que deveria ser levada muito a sério: é preciso ter mente para suportar o bom, o crescimento, o sucesso, o prazer, a vitória.

Porque vocês acham que muitas pessoas falham na hora H, tremem nas bases, amarelam, fazem gol contra? Ou, o que é ainda pior, passam grande parte da vida reclamando?

Porque existe uma espécie de intuição (mesmo que as pessoas não se deem conta disso) de que, havendo sucesso, haverá trabalho mental a ser feito para que ele possa ser sustentado e não estragado.

Do ponto de vista teórico, é isso que Freud descobriu em 1920.

Até então, ele havia considerado que a pulsão tem como finalidade última a busca pelo prazer e a evitação do desprazer. Mas, investigando a brincadeira de seu netinho que insistia em repetir a situação traumática, por meio de um carretel, da separação de sua mãe, e também das pessoas que adoeciam por traumas de guerra, Freud concluiu que, ao lado da pulsão que busca o prazer, a ligação, o crescimento (que ele cunhou de pulsão de vida), existe uma pulsão que visa à desagregação, a ruptura, o retorno ao inanimado e à inércia (chamou isso de pulsão de morte).

Então, funciona da seguinte maneira: a mente necessita fazer um trabalho constante para manter-se investindo na vida. Este investimento pulsional, que na vida diária comparece sob a forma dos nossos sonhos, desejos e projetos de vida, é sempre contrabalanceada por uma força contrária que visa desinvestir, desagregar estes mesmos objetos, sonhos e desejos. Em termos práticos, surge então aquele terrível dilema que todos nós já sentimentos inúmeras vezes: Depois de conseguir dar um passo adiante, vem aquela voz que diz: “Deixa isso pra lá. Não vai dar certo mesmo! É melhor você desistir agora. Vai ser muito difícil conseguir isso que você está querendo.”

Neste sentido, um dos trabalhos mais fundamentais de um analista é ajudar o seu analisando a não destruir o seu próprio potencial, seus sonhos e desejos pelas suas pulsões destrutivas. Dito em termos mais simplistas: o trabalho do analista (um deles) é ajudar o analisando a (re)conhecer a atuação de suas partes más, destrutivas e invejosas, partes estas que devem ser contidas pelos sentimentos amorosos e mais positivos.

Uma vez que a pessoa reconhece estes sentimentos desagradáveis e de muito mau gosto em si mesmo, fica mais fácil a pessoa reconhecer (e se defender) destes mesmos sentimentos nos outros. Pois, uma vez que podemos reconhecer que, depois de um enorme sucesso ou de uma importante conquista, vem aquele desânimo (que em termos psicanalíticos significa a eclosão da inveja na mente), também podemos reconhecer este gesto maldoso no outro também.

Neste caso, há um agravante que precisa ser levado em conta: o ataque maldoso de alguém que se depara com uma pessoa que está tendo coragem de sonhar e realizar seus sonhos tem uma dupla função. Primeiro, ataca-se o próprio objeto invejável (o trabalho, o terreno, a conquista, etc.). Segundo, ataca-se o próprio ato heróico e corajoso da pessoa que, a despeito do temor e do medo, ousou desejar e se responsabilizar pelo próprio desejo. Pois, se ninguém ousa sonhar e viver de forma intensa e pulsante ao meu lado, não há porque eu me sentir ameaçada e nem me lamentar pelos sonhos que foram maldosamente assassinados por mim. Mas, uma vez que eu me deparo com a coragem de alguém se realizando bravamente na vida, surge a incômoda comparação: se ele está fazendo, porque é que eu não faço também?

Este é, para mim, um dos atos mais heróicos que um ser humano pode realizar: o de se tornar responsável por seu próprio desejo e, na medida do possível, não deixar que ninguém (nem suas partes más e invejosas) destrua aquilo que é precioso para ele.

Esta é uma coisa que devia ser ensinada nas escolas, aos pequenos: não se envergonhem de serem realizados, felizes, bem estabelecidos. Não se envergonhem de suas competências, atributos e sucessos. Vão tão longe quanto puderem ir, mas não se traiam. Não sejam menos do  que aquilo que vocês podem ser, pois nunca irão se perdoar por isso. E o que é pior: passarão o resto de suas vidas punindo os seus parceiros e impedindo-os de irem tão alto quanto puderem ir. Pois, se eu não fui, você também não vai!

Gostaria que todos os seres humanos pudessem ter a coragem do nobre guerreiro que prefere morrer na batalha a nunca ter guerreado por um algo em que acredita! Gostaria que vivêssemos até o limite do que pudéssemos viver, inteira e intensamente. Tudo isso devia ser ensinado nas cartilhas e pensado seriamente.

Vocês já pensaram o quanto mães e pais felizes e realizados na vida poderiam facilitar a vida de seus filhos? Quanta culpa pessoas carregam pelo fato de seus pais, tios, avôs e avós não terem tido a coragem necessária de bancarem seus próprios desejos? Como se realizar quando seus antepassados não tiveram esta coragem? A coragem de assumirem-se felizes ou de, pelo menos, partirem em busca disso? Estas são reflexões profundas e muito sérias que todos aqueles que pretendem serem pais e mães deveriam se fazer.

Pois, como dizia Guimarães Rosa, viver é perigoso e requer muita coragem. A mesma coragem tão lindamente descrita por Gonçalves Dias em “Canção do Tamoio”:

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.

Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte:
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.

O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

Domina, se vive;
Se morre, descansa
Des seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!

É pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nascente,
Valente serás.
Sê duro, guerreiro,
Robusto, fragueiro,
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz.

Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D´inimigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d´ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão

E a mão nessas batas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!

Porém se a fortuna,
Traindo seus passos,
Te arroja nos laços
Do inimigo falaz!
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranquilos nos gestos,
Impávido, audaz.

E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.

As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.

 

6 comentários em “A coragem nossa de cada dia”

  1. Ana, que lindo esse seu post. Obrigado por estar ao seu lado, desbravando os meandros das nossas mentes, sonhando e construindo um futuro.

  2. Ana Laura, o texto é simplesmente inspirador, além de proporcionar ao leitor o desejo de ampliar a mente para suportar o bom, e todo misto de sentimento que é gerado por ele.
    Excelente, continue nós agraciando com suas palavras. Abraços

  3. Ana Laura, amei seu texto! Na verdade, foi um presente tê-lo lido hoje. Caiu como uma luva… Rsrsrs…
    Li outros que também gostei muito.
    Fiquei morrendo de vontade de ler seu livro.
    Ainda farei isso.
    Beijo grande, Ivy.

    1. Oi Ivy! Que bom que gostou do texto. Essa é uma questão tão importante, não é? A gente adquirir capacidade para aguentar o sucesso… Fico feliz que as minhas reflexões tenham encontrado solo fértil dentro de você. Caso você deseje, o meu livro pode ser adquirido pelo site da própria editora: http://www.ield.com.br

      Beijo grande pra você também!

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