O falo como condição de alienação

Em psicanálise, uma forma de definir o falo é qualquer símbolo com função imaginária de suturar[1] nossas faltas existenciais. Freud descobriu que o pênis, órgão corporal masculino, tem para crianças de ambos os sexos, a função privilegiada de um falo.

Esta significação do pênis como falo é, obviamente, determinada pela cultura, o que significa dizer que não se trata de um mero acaso que as coisas tenham se arranjado assim. Em uma sociedade matrilinear e não patrilinear como é nossa, o falo bem poderia estar do lado feminino sendo, por exemplo, os seios intumescidos de leite ou o útero.

E embora Freud tenha chegado à descoberta do pênis como símbolo fálico em nossa cultura não conseguiu explicar as origens disso. Por que o falo esteve sempre do lado do homem e não da mulher ao longo da história humana, não se sabe bem ao certo dizer.

Mas, voltando à questão do falo, para a filósofa Simone de Beauvoir a importância fálica que o pênis adquire na configuração subjetiva da cria humana, só pode ser explicada pela tendência, no humano, em se alienar de si mesmo.

Diz ela:

A angústia frente à sua liberdade, conduz o sujeito a refugiar-se nas coisas, o que é uma maneira de fugir de si mesmo” (p. 76).

Seguindo o seu pensamento, somos levados a nos indagar: por que o homem desejaria fugir de si mesmo? O que haveria em sua condição de sujeito que o levaria ao insuportável da angústia, de onde ele tentaria se evadir a qualquer custo, pagando com isso o duro preço da alienação? Porque o homem precisaria recorrer às garantias ilusórias do falo para proteger-se de sua existência?

Ora, no cerne do sujeito há a falta, o furo, o vazio. A cria humana, na medida em que se desprende do Todo no ato do nascimento, angustia-se frente ao seu enorme desamparo. Agarra-se e erotiza as carnes maternas não porque esteja condenada a desejar a mãe, mas porque este contato a coloca de volta como o centro vital de alguém, que ela também acredita ser Toda. Assim, a liberdade angustia porque ela nos lembra de que estamos à deriva em um mundo a priori destituído de qualquer sentido e ordem pré-estabelecida. O exercício da liberdade em um mundo onde não sabemos para onde nossas escolhas nos levarão, causa vertigens. É como se caminhássemos cegos em uma floresta densa, repleta de perigos, e tivéssemos que decidir a cada instante, para onde seguir a partir de cada passo dado.

Agarrar-se ao falo é, portanto, agarrar-se a uma tábua de salvação que, ainda que não me leve adiante, pelo menos não me deixa afundar no abismo das incertezas.

O sujeito masculino tem um caminho seguro, mas perigoso, de alienação de si, e é disso que Freud fala o tempo todo. Ele diz “Eu sou um homem dotado de um órgão viril”, e acredita que isso lhe basta para garantir o seu sentido de existência.

Lembro-me de um homem bastante falicizado que, na clínica, mostrava-se irritado e constrangido por estar entediado, o que ele não entendia, tendo em vista “que tinha tudo o que um homem poderia querer”. Obviamente, ele referia-se a um carro zero quilômetro, uma linda mulher, um ótimo trabalho e uma bela casa. Todos estes objetos, uma vez falicizados pela cultura de massa, são vistos pelo sujeito como acessos garantidos a uma vida feliz e sem conflitos. Este mesmo homem, já em análise, costumava dizer, indignado e arrogante: “Precisamos resolver logo os meus sentimentos.” Neste caso, seu próprio discurso era revestido, para ele, de um significado fálico, pois através de suas colocações categóricas deixava pouco espaço à reflexão e à indagação curiosa de si mesmo.  Ou seja, tudo o que produzia em termos discursivo vinha carregado de certezas, modo muito astuto de calar as dúvidas. Ao longo de alguns anos de trabalho analítico, o desmonte da falácia de sua completude foi sendo possível, abrindo espaço para a angústia, mas também para a criação e para uma vida dotada de real sentido. Neste período do trabalho, trouxe muitos sonhos em que seus objetos fálicos (computadores, o próprio pênis, dinheiro, escritório, etc.) sofriam avarias de toda ordem; até que finalmente, passou a precisar cada vez menos deles para suportar sua vacilante existência.

Já a mulher, uma vez percebendo a ausência do pênis em si, recorre com frequência à falicização de seu próprio corpo para fazer frente à sua angústia existencial. Superinveste libidinalmente seu próprio corpo, sua beleza, suas vestes, seus cabelos, acreditando com isso poder garantir o sentido de sua existência, embora com isso, tudo o que consiga é se alienar no olhar do outro e em uma vida entediante e sem projetos reais de superação. Um bom exemplo desta situação é a personagem Emma Bovary de Flaubert. Ensaiando entrar em contato com a falta de sentido de sua vida, a única saída que Emma encontrava para responder à sua angústia existencial era se endividar com móveis novos, sonhar com bailes de princesa e lindos vestidos, e devanear ser salva por um grande amor. O que Emma não sabia era que o destino de sua história estava em suas mãos e estava para ser inventado por ela, e por mais ninguém. Investindo móveis, vestidos, homens e amores proibidos de valor fálico, esta profunda personagem caiu no engodo de que, nestas coisas, encontraria o verdadeiro sentido de sua existência. Outro objeto eleito como símbolo fálico para a mulher é costumeiramente um filho que, no seu inconsciente, destinará ao pai, tanto para lhe devotar seu amor infantil, mas, sobretudo, para ser reparada de seu ressentimento com o mundo masculino, tornando-se tão potente quanto ele[2].

O fato é que homens e mulheres ao se depararem com a falta de sentido de suas vidas recorrem aos objetos fálicos acreditando que ali encontrarão o sentido que buscam, quando na verdade deveriam fazer o caminho inverso, ou seja, voltar-se para dentro, e não para fora de si. É quando ele se volta para fora, e suporta mal as contingências de sua existência, que o homem se apega às falácias sinuosas da mentira e da hipocrisia, com as quais tenta se convencer a qualquer custo de estar fazendo um ótimo negócio. Tudo para se defender da impermanência conflituosa que é viver.

Para terminar, cito na íntegra uma passagem ilustrativa da filósofa que sintetiza bem algo com que lida cotidianamente o psicanalista e que é a atitude oscilante do humano em relação a si mesmo, que transita entre a covardia e o heroísmo:

O homem acha-se permanentemente em perigo; sua vida é uma empresa difícil que nunca se encontra assegurada. Mas ele não aprecia a dificuldade e teme o perigo. Contraditoriamente, aspira a vida e ao repouso, à existência e ao não ser. Sabe que a inquietação do espírito é o preço que terá que pagar pelo seu desenvolvimento; que sua distância em relação ao objeto é o que lhe custa sua presença consigo mesmo, mas ele sonha com a quietude na inquietude e com a plenitude opaca que sua majestosa consciência habitaria.”(p. 37)

Assim, apesar de esta filósofa ter tido uma má compreensão dos propósitos éticos do método analítico, pois deu ênfase excessiva aos elementos pulsionais da teoria freudiana como determinantes do destino humano e desconsiderou o aspecto ético e transformador do método, Simone de Beauvoir, a meu ver, faz contribuições elegantes e muito vivas ao pensamento freudiano. Ambos encontram-se imbuídos de um sincero desejo de desamarrar o sujeito de suas alienações e recolocá-lo em contato consigo mesmo para, só então, poder inventar seu modo próprio de viver.

Referência bibliográfica:

Beauvoir, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet – 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

[1] Suturar: operação que consiste em coser ou costurar as bordas de uma ferida para fechá-las.

[2] Esta não é a única significação inconsciente encontrada na maternidade; tão somente são as significações mais infantis e mais recalcadas.

2 comentários em “O falo como condição de alienação”

  1. Obrigada pelo conteúdo acessível, em termos de leitura e, tão questionador, trazendo escritos longevos cujo tema é sempre passível de discussão. Grata por agregar tanto em mim, hoje.

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