A lua e o mar

maquina de escreverÉ com uma dor aguda que deixo ir tudo o que de belo um dia esteve em mim. A praia enternecida em seus tons crepusculares de pérola; o choro da criança amada que, como uma sinfonia límpida, regam o ar com seu desamparo de rosas; a paisagem luminosa que vai ficando para trás enquanto caminho a passos rápidos para que a despedida não me despedace; os sons agudos do pássaro cantante na manhã em que se anuncia a aurora milagrosa; o olhar fugidio do ser humano que quase se deixou capturar. É com pesar inelutável que deixo cada uma das conchas que tocaram os meus pés e que me lembram que estarei morto tão logo minha consciência venha despertar do grande sono que é a vida.

Constato, consternado, que não é perda aquilo que vivo pois para se perder há que se ter possuído o bem almejado. E eu sei que não foi meu o luar que prateou as ondas crispantes e que não foi minha a beleza que fez transbordar de êxtase a alma. Mas eu estava ali testemunhando o espetáculo colossal, o coito entre o mar e a lua, cena herética que nenhum olho humano pode suportar sem se lançar perigosamente no abismo.

Depois disso, como continuar vivendo? Como voltar ao quotidiano das conversas cinzentas de elevador, aos debates intermináveis sobre os eventos climáticos do dia, às discussões sobre o preço do tomate, às queixas intermináveis sobre como vai mal a economia ou sobre como anda perdido o mundo.

Diante do burburinho, minha alma silencia. Mas não é um silêncio escuro, viscoso. É de um silêncio grávido que ela se enche. Nesta prece, fecho os olhos. E, em meio ao sono inconsequente dos viventes, reencontro em minha alma grávida o luar crispando o mar com suas pinceladas estonteantes de prata, as conchas que feriram docemente os meus calcanhares erráticos, o choro de rosas da criança amada, a paisagem luminosa, o pássaro cantante. Reencontro também o ser humano que quase se deixou capturar. Era eu a me olhar no espelho.

 

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