Felicidade roubada

maquina de escreverO mar brilhante chamava o menino com seus braços verde-esmeralda. Era manhã de um domingo quente e o menino via o mar pela primeira vez. Fora o avô, seu avô duro e bom, que lhe proporcionara o encontro tão aguardado. Fugidos como duas pequenas lesmas, lá foram eles, como ladrões em busca de um quinhão de prazer: o avô guiando o caminhão enorme e o menino com seus pequenos olhos transpassando o limite das ferragens, com uma fome que pretendia engolir tudo de uma vez.

Chegaram e mal o avô teve tempo de estacionar o grande elefante vermelho, o menino zarpara com o coração batendo frenético como tambor. Abrira a porta num relampejar de olhos e, desembestado, correu com suas perninhas finas e um pouco tortas, em direção ao grande deus. No caminho, foi jogando suas roupas sujas, furadas do trabalho duro e precoce, um pouco prejudicado, é verdade, pelas brincadeiras irresistíveis de pneu com o irmão mais novo. Jogou tudo o que era sujo e roto, ficando só de cueca, com seu corpo esquelético de felino em formação.

O mar o chamava como os braços quentes e úmidos de uma mãe amorosa. Sim, o menino sabia que lá ele poderia jogar seu corpo na imensidão azul, pois a mãe natureza, o mar de ventre infinito, iria acolhê-lo sem medo, sem culpa, sem rechaço. Com sua sensibilidade de lobo, sabia que a água do mar era como um colo quente de mãe. Por isso correu até a exaustão de suas forças, e depois nadou até se exaurir por completo.

Enquanto isso, seu avô duro e bom permanecia sentado na areia, olhando o neto como uma miragem. Por que não se jogava na água mãe? Talvez tivesse medo de tanta felicidade. Sua alma maltratada ficara com um medo colossal do acalanto. Talvez o avô sentisse que o mar fosse uma mulher traiçoeira que iria engoli-lo inteiro para depois cuspi-lo fora, tão logo ele entregasse docilmente seu corpo velho e enrugado àquele encontro, tão temido e aguardado. Por isso, o avô não ia. Sua cota de prazer era vivida à prestação. Depois, exausto de tanto sol e de tanta luz, o avô deitava seu corpo seminu na areia da praia e se entregava a um sono pacífico, enquanto seu neto agitava-se e gritava desvairadamente.

Mais tarde, quando a fome os visitava, o avô comprava um saco de pipocas. Retirava orgulhoso o dinheiro amassado de seu bolso roto e pedia ao pipoqueiro: um saco de pipocas, por favor! Seu peito se enchia. Sentia-se em um filme americano que ele via na TV. Estranhamente, ele só comprava um saco de pipocas, embora fossem dois, embora ele tivesse dinheiro, embora a fome fosse muita. E isso era tudo o que eles iriam comer até a viagem de volta.

O menino, com lágrima nos olhos, não entendia aquele gesto de amor que lhe parecia um pouco duro demais. O avô lhe explicava, com voz que tentava ser doce, que a vida era dura, menino, e que ele teria que conquistar as coisas por si mesmo. O menino assentia com a cabeça, em tom grave, demonstrando que havia compreendido a sábia lição. Apesar disso, sentia seu coração apertar-se. O aperto era consequência de uma luta selvagem gerada por sentimentos tão opostos. Aridez e doçura pareciam irreconciliáveis. Logo em seguida, perdoava o avô. Lembrava-se de sua quase morte, de sua alma de leão encarniçado na luta pela sobrevivência, dos anos miseráveis passados no navio, da fome, do frio abissal, da selvageria que é a vida. Depois do perdão comia, sentado no banco do caminhão e embalado pelos braços do avô, a deliciosa pipoca que parecia mais doce e mais tenra do que todas as pipocas do mundo.

O dia estava indo embora. O crepúsculo se aproximava tingindo o céu de um alaranjado que deixava tudo triste. O avô, agora mais duro que bom, chamava o menino com voz de touro e dizia que era hora de partir. As lágrimas vinham mais uma vez, agora em tom de despedida-despedaçada.

O elefante vermelho era posto a roncar os seus motores e partia, levando dentro o menino e o seu avô, calados, ambos querendo segurar o mais que pudessem aquele mar imenso no peito. E o mar, com seus braços de mãe, ia ficando para trás como uma promessa longínqua de um sonho bom.

2 comentários em “Felicidade roubada”

  1. Lindo demais. Me fez chorar. Começamos como o menino e terminamos como o avô. De quantas formas me roubo a felicidade? Ana, entre tantas estorias bonitas que você vem escrevendo, esse texto seu passou a ser um dos meus favoritos. Um abraço.

  2. Quanta delicadeza há nesse texto!
    Minhas primeiras lembranças conscientes são sobre o meu encontro com o mar, talvez o mesmo mar descrito nesse texto – as águas por onde chegaram nossos ancestrais, com histórias tão duras de sobrevivência e permanência em terras novas.
    O olhar que seu texto traz sobre a dureza do avô diante do deleite do menino busca nessa rigidez uma humanidade tão frágil – a fragilidade de quando os maus-tratos e a dureza da vida nos fazem acreditar que não somos dignos de experimentar o prazer em sua plenitude.
    Pra mim, que tenho mais proximidade com esses personagens, esse texto me fez olhar pra minha próprio história com mais compaixão e empatia. Vou guardar no coração essa boa lembrança que você resgatou, Ana.
    Um abraço forte.

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