O homem que prendia pássaros

maquina de escreverA cena era brutal: pássaros que nasceram livres, lindos e coloridos, debatendo-se violentamente contra as grades da prisão. Aqueles pequenos pingos de milagre no meio do dia debatiam-se com tanta força e intensidade que de suas asas brilhantes o sangue já começava a verter; feridas fundas iam se formando por suas batidas frenéticas. A violência havia se imposto e os seres miraculosos nada podiam fazer contra ela. Estavam presos, vítimas da brutalidade. Marina e Pedro avistaram a cena horripilante soltando um grito surdo de horror.

Marina, frágil demais para suportar tamanha dor, sentiu seus olhos inundarem. Queria segurar a inundação que deixava sua alma exposta, mas não podia. Era translúcida demais.

Pedro, mais vigoroso de alma, pôs-se imediatamente a matutar como usaria sua força de leão para salvar os pingos de vida. Marina teve medo por seu amado, pois pensou que ele teria que ser tão robusto e vigoroso quanto às grandes gotas de chuva que lavam a poeira do horizonte, tornando-o límpido e fresco.

Animados um pela força do outro – Pedro, pelas lágrimas da dor criadeira dos olhos castanhos de Marina e ela, pela coragem de seu amante-amado – puseram-se a caminhar como dois valentes guerreiros que não se importariam em dar a vida pela vida. Caminhando em passos firmes, avistaram o responsável pelo crime atroz.

A bocarra do homem era infernal. De seus olhos vertia sangue. Marina olhava estupefata a cena. Não conseguia tirar seus olhos do sangue nos olhos do homem. De sua boca vertia um veneno fétido e viscoso. O clima era tenso e explosivo. Alguém iria morrer ali, era o que Marina silenciosamente pensava. Ou quem sabe a morte já tivesse sido realizada tempos atrás e Pedro, com seu ar majestoso, estivesse tão somente trazendo a verdade à luz? Marina lembrou-se dos vampiros e teve febre de medo.

Depois de instantes aterradores de silêncio denso, Pedro deu o primeiro passo:

      – Por que você prendeu os lindos pássaros?

O homem, como uma enguia, fez-se de desentendido.

Mais enfático, Pedro continuou:

     – Você não sabia que prender pássaros que nasceram livres é um crime? Por que os prendeu?

Marina, pálida, percebeu que olhos sanguinários do homem pareciam prestes a explodir de cólera. Nesta luta ferrenha entre a explosão e o contorcer da enguia, venceu a segunda. O homem começou a se contorcer freneticamente fazendo um movimento convulso pra frente e pra trás. Seus olhos, antes prestes a explodir, ganharam um ar de aparente submissão, enquanto o seu corpo todo se contorcia, liso, invertebrado e pegajoso. Marina pensou que talvez ele quisesse deixar Pedro confuso com este ziguezaguear de corpo que adquiria um ar de fragilidade artificial. Sua voz tornou-se mais melodiosa como uma sereia encantatória. Mas Pedro, que era valente de alma, não se deixou seduzir.

      – Fale, homem. Pare de se contorcer como uma lesma. Por que prendeu aqueles lindos pássaros? Eu vou soltá-los agora.

Com uma voz patética, o homem respondeu:

     – Eu não fiz nada demais, senhor! Eles cabem lá dentro. O que eu fiz não é ilegal, eu juro.

Pedro respondeu, retumbante:

     – Mas você também cabe lá dentro. E se fosse você a ser colocado na prisão?

Marina não podia acreditar no que estava ouvindo. O que mais doía em Marina não era propriamente os pássaros presos – isso ela sabia que iria resolver o mais breve possível com seu querido Pedro. O que mais lhe doía era a queda na mentira, o ziguezaguear da enguia, as seduções do falsear do pensamento que levam a caminhos terrivelmente perigosos e sem volta. Em um átimo de luz, então, Marina pôde compreender que o sangue nos olhos do homem era dele mesmo. Era ele que estava preso para sempre em seu ser invertebrado. E era por estar preso que prendia os lindos pássaros. A vida, para aquele homem, não valia mais nada. Deste seu vislumbre, sentiu alguma compaixão.

Mas, como para o mal não há perdão (embora para o homem que o pratica sim, pois no final são como crianças), Marina e Pedro tinham pressa em salvarem os lindos pássaros.

Deixaram o homem-enguia contorcendo-se como um pobre diabo para trás e rumaram resolutos à prisão de pássaros.

Foram as mãos pequenas e frágeis de Marina que abriram as grades. Talvez Pedro sentisse que eram as mãos da infância que deveriam ajudar nascer liberdades. E então, os dois se colocaram sob o lindo sol crepuscular, debaixo de uma grande figueira para assistem ao espetáculo sublime da redenção.

Um a um, os pássaros brilhantes redescobriram o prazer de baterem suas asas potentes e fortes em pleno ar. Um a um, deixaram para trás a prisão que mata a vida. Um a um, como pequenos pontos de milagre no meio da tarde, conquistaram a liberdade do voo e foram para bem longe do homem de sangue nos olhos.

Marina chorou novamente, mas agora de alegria sublime. Seu frágil peito doía de tanta felicidade, de tanto orgulho, de tanta vida. Em tom de oração, Marina rezou e pediu ao deus-natureza que ajudasse estes pequenos pássaros a não mais voltarem para nenhum tipo de prisão, para nenhum tipo de homem de sangue nos olhos. Pensou também, como um suspiro, que a vida é frágil e milagrosa.

Depois, agarrou as mãos firmes do seu jovem Pedro e partiu feliz, como bebê recém-amamentado de amor.

Um comentário em “O homem que prendia pássaros”

  1. Querida Ana Laura,

    Gosto muito de ler seus contos. Não são admonitórios nem tentam provar um argumento. Seus personagens são profundamente humanos. As situações com as quais eles têm de lidar são lindamente metafóricas.

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