Na Kombi com meu pai

Entre os dias 14 e 20 de abril de 2024, eu e meu pai fizemos uma viagem de Kombi juntos. Pediram-me fotos da viagem. Mas como transmitir em imagens estáticas emoções tão agudas e profundas? Decidi então escrever. 

Antes da viagem, estava simplesmente apavorada. Deixar para trás o conforto da minha casa para dormir numa Kombi, sem saber onde iríamos dormir, comer, tomar banho e fazer nossas necessidades fisiológicas; viajar de oito a dez horas seguidas por dia, para atingirmos o ponto onde queríamos chegar, o Chuí, no extremo sul do país; tudo isso me apavorava demais. 

Na prática, descobri que dormir na Kombi é mais confortável do que eu imaginava, em parte, graças ao capricho do meu pai na escolha do colchão e no tempinho frio que pegamos o caminho todo.

Que o xixi não foi um grande problema, graças ao mictório que o meu pai inventou; que sempre existirão banhos quentes nos ótimos postos do Sul do país e que, sim, ficar sentada de oito ou dez horas por dia no banco da kombi exige um enorme preparo físico, o que o meu pai parecia tirar de letra. 

Na estrada

Outra coisa interessante que descobri é que este tipo de viagem onde se passa muito tempo na estrada gera um sentimento dúbio, de uma estranha solidão ao mesmo tempo que de uma extrema liberdade. 

Como se, de repente, o viajante rompesse com o miserável comesinho da vida e passasse a habitar um mundo paralelo de onde vê as coisas de fora, participando e ao mesmo tempo estando excluído da vida comum entre os homens. Posição talvez muito comum ao psicanalista.

Meu pai, que foi caminhoneiro por muitos anos e ama dirigir, explicou-me sobre isso que este tipo de viagem é viciante e por isso mesmo “perigosa”, já que a pessoa, uma vez experimentando-a, pode nunca mais conseguir ficar satisfeita com sua vida rotineira. 

Deve ter sido por isso que Elizabeth, também conhecida como “Sissi”, a célebre imperatriz da Áustria em 1877, que levou às últimas consequências seu ódio às obrigações sociais, afogando-se no mar aos 40 anos, disse certa vez que:

As pessoas temem o efêmero. Por isso fazem de tudo para se agarrar a alguma coisa. 

Sobre isso, observei que numa viagem de Kombi como a que eu fiz, experimenta-se o caráter radicalmente efêmero da vida em cada pequena coisa: nos encontros profundos que se faz com as pessoas pelo caminho, e que no instante seguinte, se deixa para trás; em cada posto de gasolina ou hostel que se dorme com a Kombi, do qual se parte logo na manhã seguinte; em cada paisagem que se vê e que logo se perde de vista. 

E, principalmente, nos imprevistos com os quais se lida a cada instante do caminho. 

A dor da partida

Nesse sentido, uma simpática e alegre senhora de um hostel que nos abrigou num dos dias da viagem me disse o quão difícil era para ela a partida de seus hóspedes nômades, o que a fez, bem como ao seu filho, insistirem muito para que passássemos mais um dia lá, com o sedutor convite de que nos assariam peixes! 

No dia seguinte, às 5 horas da madrugada, quando já estávamos partindo, vimos, com surpresa, que ela tinha se levantado só para acenar para nós, o que deixou nossos corações bem apertados! 

Pensando na cena depois, refleti quão corajosos devemos ser na vida para realizarmos nossa sina, cumprida sempre à sós, e que envolve, por exemplo, nos separar das pessoas que amamos para irmos além. 

Nesse aspecto, foi inevitável não me lembrar de mim mesma e de quando sai da minha cidade natal com dezesseis para dezessete anos para construir-me sozinha em outro lugar. 

E também de imaginar que coragem deve ter tido o meu pai para viajar sozinho de bicicleta até o Chuí, feito que concluiu em 2004. 

Os chaveirinhos-presentes

Outra coisa interessante da viagem foi observar uma prática intuitiva que meu pai desenvolveu para tocar o coração das pessoas: fabricar chaveirinhos e dá-los a todos os que encontra pelo caminho da viagem. Prática que, segundo me explicou, tem o poder mágico de revelar o interior de cada pessoa. 

Assim, era tocante ver a carinha de alegria e espanto da maioria das pessoas que recebiam, com gratidão, o chaveirinho-presente, enquanto somente uma ou outra recusavam, desconfiadas de alguma má intenção escondida no ato. 

Observar esta prática dos chaveirinhos do meu pai me fez concluir que o grosso da humanidade carrega no coração um enorme anseio por amor e compreensão, como as crianças desamparadas e amedrontadas que um dia fomos e que, no fundo, nunca deixamos de ser. 

O amor entre um pai e sua filha

Finalizando, ter feito esta viagem com o meu pai, que terminou antes da hora porque molhamos toda nossa roupa num trajeto de duas horas de barco, da Cananéia até Guaraqueçaba, somado às péssimas condições climáticas que encontramos no Sul, me fez aprender muitas coisas.

Uma delas, e talvez a mais importante, é que o amor que pode brotar entre um pai e sua filha é muito especial e guarda peculiaridades em relação ao amor entre o pai e seu filho homem, conforme o grande Sheakspeare intuiu em “Rei Lear”. 

Nesse aspecto, alguns pais me confidenciaram invejarem meu pai e manifestaram o sonho de, um dia, poderem viajar sozinhos com suas filhas. O que talvez seja menos habitual, pelo menos em nossa cultura, que um pai viajando sozinho com seu filho. 

Assim, quão extraordinário foi meu pai conhecer aspectos meus que não conhecia como, o fato de eu tocar violão e gostar de cachoeiras, natureza e água como ele. E também eu saber que ele carrega consigo um sapatinho de infância meu.

De minha parte, senti ampliar-se em mim um sentimento de ternura e admiração por meu velho e corajoso pai, como no dia em que tive que atender um paciente numa pousadinha em que estávamos, e ele ficou por quase duas horas me aguardando num sofazinho do lado de fora, enquanto explicava, orgulhoso, para as pessoas, que sua filha estava “numa conferência”.

Ao terminar o atendimento, fui correndo chamá-lo e ele estava dormitando, meio caído de lado, como fazem os velhinhos, o que me fez enxergar, com uma agudeza profunda, que meu corajoso e incansável pai estava envelhecendo e daqui há alguns anos, não estará mais aqui.

Nesse instante, senti uma gratidão profunda por eu ter me encorajado a convidá-lo para essa viagem, da qual nunca vou me esquecer. 

Porque, assim, no dia em que ele não mais existir, continuará vivo no meu coração e nas minhas memórias, do único jeito que faz juz ao homem excêntrico que ele é: como um menino aventureiro e irriquieto e curioso, que nunca se sentiu confortável entre os homens com suas estranhas regras de viver.Meu pai Giba, muito obrigada por essa aventura. Esse texto é dedicado a você!

*Abaixo, seguem um vídeo da Kombi por dentro e todas as fotos da nossa viagem

https://www.dropbox.com/scl/fo/4fzi8vdns0fj9bjgbcybt/AHuX6xiMTdw1o6Y3R9NG0dU?rlkey=hqe8scogz1wwo4iufoqjt792u&e=1&st=ikgal3sv&dl=0

2 comentários em “Na Kombi com meu pai”

  1. É preciso muita coragem, para aventurar-se rumo ao desconhecido, sem saber como vai ser e o que irá encontrar no caminho. Mas, a única certeza que pude observar é o amor entre vocês, seus olhinhos brilhando, mostrando cada detalhe da Kombi, tudo feito pelo seu precioso pai. Que coisa mais linda! Fiquei emocionada! Ter consciência da transitoriedade da vida, por outro lado é libertador, pois só assim é possível experienciar verdadeiramente a beleza de viver.

  2. O fato é que a combinação, de uma pessoa extremamente inteligente, corajosa e aventureira como você, só poderia dar no que deu! eu sabia e tinha certeza que está viagem iria te causar um impacto tremendo, assim como causou em mim, pois eu viajei com a pessoa que eu mais amo e admiro na minha vida, a Ana Laura, e fazer o que eu mais amo na vida com a pessoa que eu mais amo na vida é uma sensação de pura realização e felicidade, parabéns Ana Laura, você é guerreira e muito forte, não é a toa que você tenha realizado tanto e tantas coisas na vida, pois você é preparada para a vida como ela é, natureza pura, frio, calor, chuva, sol, certeza e incertezas, porem com a convicção de estar realizado de saber que você gostou da aventura e já estar pensando na próxima aventura. Fique sempre na Paz do ALTÍSSIMO.

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