O estranho de mim que habita o outro: reflexões sobre duas notícias televisivas.

 Neste artigo pretendo tecer algumas reflexões que penso serem fundamentais para o nosso tempo atual, em que, ainda que continuemos a nos organizar em sociedade, nos isolamos cada vez mais do “outro”, do estranho que quase sempre nos assusta, amedronta e mete medo.

As formas que temos buscado para nos isolar do “outro”, do “estranho” são inúmeras: vivemos em condomínios fechados, com cercas, senhas, câmeras de segurança, etc. Cercamo-nos de todas as formas de precaução contra o “outro”.

No elevador do prédio, não há situação mais incômoda do que quando dois estranhos se encontram. Olham para cima, para o lado, assoviam. Tudo para não se conversar com o “estranho”, mesmo que este estranho more há dez ou quinze anos exatamente ao seu lado.

Às voltas com minhas reflexões sobre quem seria este “outro” que nos assusta tanto, lembrei-me que o psicanalista Renato Trachtenberg disse em um artigo seu, intitulado “Cesuras e des-cesuras: as fronteiras da (na) complexidade”, publicado na Revista Brasileira de Psicanálise vol. 47, no. 2, 2013, que o que nos assusta no “outro” não é o que ele tem de diferente de mim, mas o que ele tem de igual. Os sentimentos de desprezo, a abominação e temor do “outro” não são provocados pelo diferente que ele me apresenta, mas pelo que ele me lembra do que eu também carrego em mim. É, portanto, o igual dele (em mim) que me assusta, uma vez que este igual não pode encontrar espaço de contenção dentro da mente. Para este psicanalista, não se foge do “outro” diferente, mas foge-se do “outro” igual.

 No exato momento em que pensava sobre isso, comecei a assistir a duas notícias televisivas que me chamaram a atenção – não tanto pelo teor das notícias (algo com o qual já estamos bastante habituados na mídia: violência, destrutividade, morte), mas pela expressão facial da apresentadora.

 A primeira notícia era: Veja como surge uma favela! Um antigo prédio da operadora de telefonia celular Oi foi desativado e moradores de rua estavam tomando o espaço, demarcando-os, vendendo lotes para futuros moradores e montando seus barracos. Pensei: nada mais natural! Em uma sociedade como a nossa, tão produtora de desigualdades, o problema não é eles estarem ocupando o prédio da Oi. O absurdo da situação é eles não terem um lugar digno para morar. Um pedacinho de chão para chamarem de seu.

Do ponto de vista da psicanálise sabemos quão fundamental e atávico é o desejo humano de criar suas próprias raízes em um pedaço de chão, em paredes e tetos que possam chamar de seu; processo que faz parte do estabelecimento de sua identidade psíquica e social. Em outro artigo meu demonstrei que a primeira casa que temos é o nosso corpo e que a nossa casa (concreta) tem uma significação psíquica fundamental ao humano, não sendo somente um conjunto de tijolos, cimento e telhas. A casa é uma das representações mais profundas e primitivas que o humano constrói sobre si mesmo. É o lugar onde estamos protegidos dos perigos reais que ameaçam nossa vida (no passado, dos predadores), é o lugar onde plantamos e construímos nossa identidade básica e nos sentimos seguros e contidos em nosso psiquismo. Esta é, aliás, uma das diferenças básicas entre casa e lar.

 Mas, voltando à notícia: o que me chamou a atenção foi a expressão facial da apresentadora. Após noticiar a reportagem, ela esboçou um sorriso de desprezo e escárnio, parecendo querer comunicar o seu sentimento de absurdo pelo fato de uma favela estar se instalando em um prédio privado da Oi.

 Segunda notícia: meninos da fundação CASA aprisionaram e ameaçaram colocar fogo em um dos diretores da instituição. Penso: que medida desesperada para comunicar os prováveis sentimentos de desumanização e despersonalização aos quais estes meninos estão constantemente sujeitos. Só se ameaça matar alguém quando algo já foi morto dentro de si mesmo! Pois bem. Mas, desta vez, a apresentadora não se conteve e além de balançar a cabeça, em tom de reprovação, falou algo do tipo: “Que absurdo”. Obviamente, ela não estava se referindo ao absurdo de meninos de quinze, dezesseis ou dezessete anos estarem em uma instituição que só tem CASA no nome, mas que na essência lembra mais uma prisão medieval. Ela provavelmente também não estava se lamentando do absurdo que é pessoas que não tem um pedaço de terra para morar, terem que se sujeitar a, como formigas, se apinharem em barracos, sem contar com condições mínimas de vida.

Então, coloquei-me a pensar: onde está a capacidade de empatia com a dor humana? O que está restando de nossa capacidade de sermos empáticos a esta espécie de “lixo social” que nós mesmos produzimos cotidianamente pelo fato de escolhermos (com ou sem consciência disso) um sistema econômico e social tão perverso e que estimula, por um lado, a cobiça e a ganância e, por outro, a desumanização profunda do homem? Será que restará alguma capacidade humana de se colocar no lugar deste “outro”, que também é nosso igual?

Pois, se buscarmos no mais íntimo de nosso ser, veremos que esta “escória”, este “resto”, para a qual a apresentadora bonita e bem vestida balança a cabeça em tom de reprovação não só nos representa internamente, como também é responsabilidade nossa, pois está sendo produzida por profundos processos de cisão e fragmentação com o qual o humano lida hoje com sua mente e com suas emoções. Ou seja, é para eu não me sujar com a dor do outro e com a minha própria que balanço a cabeça, como que dizendo: isso não tem nada a ver comigo!

 É pelo fato de que cada ser humano, em nossa sociedade atual, não querer saber nada a respeito do “lixo”, do “resto”, daquilo que é feio e denegrido, do que dói e do que nos lembra de que somos feitos de carne e osso e não de imagens e pixels que estas crianças e adolescentes cada vez mais precocemente atuam suas angústias violentamente contra si mesmas e contra os outros. É por não estarmos interessados na dor do outro ser humano, e nem na nossa – naquilo que é igual em mim e no outro e que nos une em nossa condição humana – que olhamos torto para a pessoa que está dirigindo no carro ao lado, para o meu vizinho, com quem não quero manter contato (porque ele me lembra de que sou humano demais e que preciso dos vínculos para existir). Só que neste terrível processo de apagamento daquilo que é mais essencial e define a nossa condição humana – nossa capacidade de sentir – todos temos sido vítimas fatais.

Um olhar mais aprofundado nos permite ver que a jornalista provavelmente está tão desumanizada, fragmentada em sua capacidade de sentir os sentimentos e ameaçada de perder os contornos, sempre frágeis, de sua humanidade quanto os moradores da favela ou os jovens da fundação CASA. Por um mecanismo perverso – fruto de nosso estilo de vida pós-moderno que não oferece espaços de contenção para o doloroso, para o “lixo”, para o feio, para o abjeto, para o frágil e o imperfeito que também nos constitui – ela não pode sentir. Não pode sentir nada. E a palavra segue, vazia e desarticulada da capacidade de sentir, transmitindo uma espécie de show de horrores que, aos ouvidos e olhos mais atentos, causa perplexidade e horror. E  assim também segue o noticiário, hipnotizando seus telespectadores, vampirizando a mente  de milhões de brasileiros e estimulando neles a incapacidade de sentir, sonhar, desejar, tal como nos descreve o compositor Arnaldo Antunes em sua canção

Socorro! Não estou sentindo nada Nem medo, nem calor, nem fogo Não vai dar mais pra chorar Nem pra rir…

Socorro! Alguma alma mesmo que penada Me empreste suas penas Já não sinto amor, nem dor Já não sinto nada…

Socorro! Alguém me dê um coração Que esse já não bate nem apanha Por favor! Uma emoção pequena, qualquer coisa! Qualquer coisa que se sinta… Tem tantos sentimentos Deve ter algum que sirva Qualquer coisa que se sinta Tem tantos sentimentos Deve ter algum que sirva…

Socorro! Alguma rua que me dê sentido Em qualquer cruzamento Acostamento, encruzilhada Socorro! Eu já não sinto nada…

Socorro! Não estou sentindo nada [nada] Nem medo, nem calor, nem fogo Nem vontade de chorar Nem de rir…

Socorro! Alguma alma mesmo que penada Me empreste suas penas Eu Já não sinto amor, nem dor Já não sinto nada…

Socorro! Alguém me dê um coração Que esse já não bate Nem apanha Por favor! Uma emoção pequena qualquer coisa! Qualquer coisa que se sinta… Tem tantos sentimentos Deve ter algum que sirva Qualquer coisa que se sinta Tem tantos sentimentos Deve ter algum que sirva.

Para assistir ao vídeo desta música, clique aqui.

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