O tempo é um monstro que engole tudo.

imagem sobre tempo - salvador daliO tempo é um monstro que engole tudo. Esse foi o pensamento que me ocorreu hoje, logo pela manhã, sobre o qual me coloquei a pensar seriamente. Por que esta frase, categórica, enfática, povoa minha mente justo nesta terça-feira, dia 02 de dezembro, às sete da manhã? Penso na proximidade do final de ano. Data ingrata, sinistra, que sempre mobiliza angústias intensas, atávicas. O ser humano transita entre dois pólos, a vida toda. Busca estabilidade e busca mudança, transformação.

Os analistas estão habituados a esta luta infindável: o paciente nos procura em busca de transformação, porque aquilo que ele é – consequência de um jogo complexo de defesas, que o enrijecem e o protegem, frente ao susto de viver, frente à passagem do tempo – torna sua vida insustentável. Impede o balanço necessário à vida. Mas, à medida que o trabalho analítico progride e ele abandona suas defesas protetoras, vê-se às voltas com o abismo de dentes abissais do desconhecido, daquilo que ele não controla, do imponderável da vida, do tempo que passa e não volta.

Por isso Nietzsche dizia que o homem é uma corda atada entre o abismo e o mais-além. Ou seja, para se abrir ao máximo à sua experiência vital, o homem necessita se deparar com o abismo, com o desconhecido. E isso o angustia e muito. A angústia deriva do fato de que temos fortes limitações para representar psiquicamente a realidade, seja interna, seja externa.

Mas, voltando à minha frase: O tempo é um mostro que engole tudo. Ocorreu-me que a proximidade do final do ano nos traz algo de sinistro. Já repararam como a contagem regressiva para o ano novo guarda semelhanças com o misterioso nascimento de uma criança? Cinco, quatro, três, dois, um… Mas, onde há nascimento, há também morte. Quando nascemos, deixamos de não ser. Assim como quando morremos, deixamos de ser. Tudo na vida e na natureza é dialético, processual. Nesta relação do nosso ser com o tempo, só o que permanece é ele – o tempo é Absoluto, Infinito.

Diante desta constatação trágica, como sobreviver? Como continuar investindo na vida que passa a despeito do tempo que se foi e não volta mais? Como continuar amando a vida e as pessoas mesmo quando não se é mais aquela criança cheia de esperança frente aos presentes embrulhados em papel vibrante, sentindo a doçura cálida da proteção familiar frente ao desamparo radical que nos marca desde sempre?

A saída que encontro é o desapego. Para sobrevivermos ao sentimento melancólico que pode nos assolar nestes períodos – e que carrega consigo sempre o sentimento de “saudade da aurora da minha vida, da minha infância querida” (“Meus oito anos” de Casemiro de Abreu) – é preciso se desapegar. É preciso deixar os mortos, o passado e a criança que nós fomos um dia ir embora. É preciso enterrá-los, fazer o luto por eles e seguir adiante.

É preciso seguir pela travessia da vida somente com a bagagem essencial à viagem: nós mesmos e as nossas boas lembranças, às quais poderemos sempre recorrer nos momentos mais difíceis. É preciso compreender que o passado, as pessoas (pais, filhos, maridos e esposas) não são nossas posses. Não nos pertencem. Ao contrário. Nós todos é que pertencemos a este fluxo infindável de mutações a que batizamos Vida.

Com relação ao monstro do tempo, se reagirmos a ele, se desejarmos que ele estacione, que tudo fique estático e imutável, perderemos. A nossa vida perderá. Porque viver é passagem, transição, travessia. Não é ponto de paragem, lugar onde nos hospedamos confortavelmente para nunca mais sair, para nunca mais mudar.

Por isso, o meu encontro sinistro com este pensamento em pleno início de dezembro. A cidade se acende, repleta de luzes bonitas e vibrantes, como para nos acalentar dizendo: “Calma, há esperança na vida. O menino Jesus vai nascer” Mas, em seguida, há o corte abissal, o se lançar no desconhecido de um novo ano que, a meu ver, representa o ciclo de morte-e-vida. Aquilo que Bion chamaria de cesura.

Não é a toa que muitas pessoas se deprimem nesta época. Para fazer frente às angústias primordiais despertadas nesta época, agarram-se a projetos, a mandingas, a rituais de passagem. Tudo para poderem construir um kit mínimo de sobrevivência para se confrontar, no dia 31 de dezembro, com o monstro que engole tudo: o temível tempo.

De minha parte, neste meu embate interno com o sinistro monstro do tempo, (re) encontro mais uma vez minhas lembranças, minhas fotos, meus Natais vividos. Mas, sobretudo (re) encontro o hoje que, no final das contas, é tudo o que temos pra ser vivido.  Reconecto-me mais uma vez com a passagem do tempo – percepção turbulenta que está sempre sendo perdida para depois ser reencontrada. Usando uma linguagem teórica, especialmente utilizada pelo casal Botella (2002), reencontro, mais uma vez, dentro de mim a possibilidade de representar psiquicamente meus objetos internos, os quais – estes sim – são imperecíveis à passagem do tempo.

É por isso que certa vez disse Rubem Alves: “Nunca cometa a bobagem de querer revisitar lugares especiais do seu passado. Você não os encontrará mais. O tempo os varreu. Eles não mais existem. Fique com as suas lembranças e você se dará melhor”.

Sábio Rubem Alves, sábia vida…

Então, que venha o Natal e que venha o Ano Novo. Que venham as luzes e que venha a esperança. E que depois venha a cesura, a ruptura, o salto no desconhecido. Porque isso sim é vida!

* Em outra ocasião, dedicarei alguns textos à apresentação do interessante pensamento de César e Sara Botella que, a meu ver, representam o que de mais avançado há na produção psicanalítica atual. O pensamento destes psicanalistas encontra-se sistematizado em: Botella, C. e S. (2002). Irrepresentável: mais além da representação. Porto Alegre: Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul: Criação Humana.

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