O voo de Miréia

Ela se chamava Miréia. Ou melhor, este fora o nome que Pedro lhe dera depois de encontrá-la numa gaiola minúscula em uma sala escura, órfã de pai, mãe e irmãos. A cena daquela galinhazinha que nunca pisara em grama, piando freneticamente, como que pedindo para ser adotada, fez vibrar alguma corda insondável do bom coração de Pedro que imediatamente, como para salvar uma alma do hiato da não existência, pegou a galinha, enfiou-a no carro e a levou para casa.

Sua esposa Clarice viu-o chegar com a galinha que o seguia pra lá e pra cá, cheia de orgulho por recém ter encontrado uma mãe novinha em folha para ela, e não pôde deixar de ver graça na cena. Afinal, não se sabia muito bem qual dos dois, se galinha ou Pedro, sentiam-se mais sortudos com aquele iniciozinho de amor que já prometia grandes belezas, mas também uma boa dose de dor, porque um não vem sem o outro.

Assim, durante todo o mês seguinte, Pedro cuidara de Miréia com esmero de pai zeloso. Ensinara-a seus primeiros voos, aumentando o grau de dificuldade um pouco por dia, para não sobrecarregá-la demais. Passeara com ela pelo jardim ampliando bem devagarinho o raio de extensão do passeio para que ela não se assustasse com tanta imensidão. Ajudou-a perceber que era capaz de alcançar a altura do caramanchão, que logo se transformou em seu poleiro predileto para descansar pontualmente às dezoito horas de cada dia.

Mas, como adolescência de galinha chega rápido, depois de um mês Miréia, já forte e robusta, batia freneticamente as asas em busca de algo mais. Pedro e Clarice sabiam o que ela ansiava: queria ser galinha em toda a sua plenitude; queria regressar ao seu mundo, de onde efetivamente nunca saíra; queria simplesmente existir como uma galinha deixando para trás o parêntese humano que fora aquele jardim.

Mas como fazer com que ela sentisse o gosto de uma liberdade que nela só existira como pré-concepção? Como convencê-la de que os riscos de uma vida livre valiam a perda da segurança daquele aconchegante quintal? E aqueles dois corações humanos, que foram se apegando à presença da galinhazinha? Como conformá-los à ideia de que qualquer amor já é sempre um princípio de perda?

A sorte é que Pedro e Clarice nunca foram de muitos romantismos com a vida. Sabiam que arte de amar, qualquer coisa que seja, é uma espécie de doação sem retorno garantido. E que suas funções junto àquela galinha eram ao mesmo tempo modestas e cruciais: cruciais, porque sem aquele empurrão inicial, ela estaria condenada ao reino eterno da não galinha; modestas porque, depois de dado o empurrão, ela explodiria em toda a sua potencial de galinha, e nunca mais se lembraria do hiato vivido no jardim humano. Seria como se ele nunca tivesse efetivamente existido; como se ela tivesse nascido no exato instante em que pela primeira vez conseguiu ultrapassar os limites daquele muro outrora intransponível.

E o dia em que isso aconteceu foi mágico. Só foi menos mágico do que o dia em que Pedro a viu empoleirando-se pela primeira vez, junto de seu bando recém-conquistado, para passar sua primeira noite em uma árvore altíssima.

Foi assim: Pedro teve a brilhante ideia de atrair para o seu quintal, com milho, um bando de galinhas que morava perto de sua casa, para estimular em Miréia o seu desejo de existir por si mesma. De início, ela se assustou. Depois, repudiou a balburdia e a confusão do grupo, preferindo peremptoriamente a segurança de seu quintal humano. Além disso, o grupo era violento e competitivo e Miréia, menor que todos eles, deveria ser muito corajosa para enfrentar a violência de seus pares e lutar por comida.

Neste momento, venceu a arte da paciência. Todos os dias pela manhã, Pedro levava as galinhas ao quintal atraídas com milho, mostrando à Mireia que estava chegando o momento dela partir. E tudo foi acontecendo de um modo muito sutil e delicado: um dia, saía pela manhã com o bando e voltava à tarde; depois passava três dias ininterruptos paradinha no quintal, como se estivesse armazenando novas forças para a guerra que viria junto com sua liberdade recém-conquistada. Nestes momentos, Pedro caprichava com doses extras de comida porque sabia que Miréia teria um grande desafio pela frente, e que lá fora nada é dado de graça.

Depois, dois dias fora. Pedro e Clarice, ao escurecer iam correndo ao quintal e, felizes, constatavam que Miréia não tinha voltado para dormir naquele dia. Estava ficando mais corajosa, pensavam. Ambos, com o peito ao mesmo tempo feliz e cheio de preocupações, iam dormir cada qual pensando em silêncio consigo mesmos: onde andaria Miréia? Estaria ela protegida da chuva? Teria conseguido se alimentar em meio ao bando já constituído? Teria sido adotada por uma galinha mãe?

No outro dia, para alegria de ambos, Miréia chegava toda faceira, encostadinha em uma galinha grande que, ao que tudo indica, tinha-a a adotado finalmente. Então, o bando se punha a tomar sol no quintal, Miréia deitada ao lado de sua mãe, cheia de orgulho e alegria, exibindo suas penas de galinha toda para o sol quente e aconchegante.

Como Pedro era enorme em sua arte da paciência, todas as noites seguia o bando que dormia empoleirado em uma árvore alta perto de sua casa, para que pudessem se proteger dos predadores.

E eis que certo dia, Clarice recebe uma mensagem extasiada de Pedro. Miréia tinha finalmente conseguido vencer a última e mais difícil etapa de seu crescimento: subir com suas asas agora robustas na árvore altíssima para dormir com seu bando. Finalmente, tornara-se uma galinha plena e a missão de Pedro estava terminada.

A cena, depois Pedro contara a Clarice, fora linda e emocionante: sendo a última a subir, como se ainda brigassem dentro dela o medo e o desejo, Miréia ensaiou, ensaiou, ensaiou, olhou para cima, pensou em desistir, mas – como sempre há de ser – seu instinto falou mais alto. E então, ela abriu suas asas em plena potencialidade de voo e jogou seu corpo de uma vez por todas para dentro do reino insondável da natureza.

De vez em quando, ela passa pela casa deles. Não para visitá-los – a natureza não tem destas idiossincrasias. Mas ambos gostam de pensar que dentro daquela galinhazinha algo de seu quintal humano ficara, ainda que soterrado para sempre no reino dos sonhos.

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