Os conceitos religiosos de pecado e culpa são bastante mal compreendidos pelas pessoas que frequentemente os associam erroneamente à punição ou castigo divino.
Na verdade, tais conceitos teológicos recuperam as noções filosóficas fundamentais de livre-arbítrio e responsabilidade, a saber, que os homens são livres até certo ponto para decidirem como querem viver, devendo ser capazes de arcar com as consequências, boas e más, de suas ações.
Por exemplo, uma pessoa que opta por fumar ao longo de toda a vida não pode blasfemar contra Deus porque desenvolveu câncer nos pulmões.
Nesse aspecto, uma parte do sofrimento que assola a humanidade não deriva da contingência, mas é gerada, com intencionalidade ou não, por escolha dos próprios homens, que eles costumam delegar aos outros, tamanha é a dificuldade de uma pessoa se responsabilizar pelos próprios atos.
Outro fator que faz os homens sofrerem muito é o temperamento com o qual nasceram, a tal ponto Jesus ter dito “bem-aventurados os mansos de coração porque herdarão a terra” (Mateus, 5:3:12)
A contingência
Já outra parte do sofrimento que assola os homens deriva da contingência, que os gregos designavam por Moiras (destino), e que na literatura religiosa é representada pelo Deus do Antigo Testamento.
São exemplos da contingência grandes desastres climáticos, uma doença mortal em alguém que sempre cuidou bem da própria saúde ou ter nascido em uma família péssima, por exemplo.
Este é o argumento das pessoas que buscam viver de forma hedonista, já que não há nenhuma garantia de que se elas fizerem o certo, não sofrerão. Então, dirão elas, o melhor mesmo é viver o momento, entregar-se aos prazeres e não pensar no amanhã, pois o futuro não se pode prever.
Afinal, pode-se adoecer de algo grave, mesmo tendo cuidado a vida toda da própria saúde, ou ser atropelado por um homem bêbado na rua, mesmo sendo correto e justo, se a contingência estiver contra nós.
Sobre isso, a realidade está cheia de exemplos de pessoas sortudas e azaradas na vida, sem que elas tenham feito nada para merecer aquilo.
Contingência cega
Assim, o fato da contingência ser completamente cega torna os argumentos que levariam o homem a agir corretamente muito precários, pois, não há nenhuma garantia de que uma pessoa que foi justa, viveu corretamente, cuidou bem da própria saúde e fez boas escolhas, não vá sofrer, exceto pela sensação de paz em relação à própria consciência.
Como psicanalista, penso que isso não é pouco, pois a consciência pesada em relação a alguma má ação que se teve ou por se ter vivido uma “vida errada” é um dos piores sentimentos que existem, podendo até mesmo vir a destruir um homem.
Mas, os seres humanos são tão díspares em termos de graus de amadurecimento moral que contar com a moralidade deles para fazerem o certo, é algo bastante ingênuo de se considerar, pois só um homem com alguma moralidade pode se sentir mal com algo que tenha feito, podendo vir a aprender com os próprios erros, o que não é ocorre para muitas pessoas.
Um pequeno deslize
Voltando às más escolhas humanas, um aspecto perturbador sobre isso é que às vezes basta um pequeno momento de deslize ou de guarda baixa para uma vida toda ser destruída, a tal ponto a vida é implacável nesse sentido, o que torna o homem moralista bastante limitado para compreender os verdadeiros dramas humanos.
Sobre isso, conheço uma mulher já idosa que sempre sentiu muito prazer à mesa, e que vinha se tratando heroicamente de um câncer no intestino.
Num momento de fraqueza de sua rígida dieta alimentar, ela fraquejou e comeu um bife inteiro de carne, o que a rendeu uma nova cirurgia, vários dias na UTI com risco de vida, a perda de um novo pedaço do intestino e uma bolsa de colostomia, da qual não se sabe se se livrará.
Esta situação me fez pensar em quão violentos e cegos são os desejos humanos e em como é importante conhecê-los intimamente em nós, de modo a não sermos destruídos por eles.
Outro aspecto que esta situação me fez pensar é na importância de estarmos sempre vigilantes em relação a nós mesmos, pois uma pequena fraquejada, pode terminar em tragédia, como no caso da velha senhora. E as situações nas quais seremos tentados pela vida em relação aos nossos pecados capitais, nunca faltarão.
A dificuldade de ser humano
Penso sobre isso que gostamos de considerar, por pura maldade, que os seres humanos erram porque são maus, pecadores e fracos, quando, na verdade, o fato é que ser ser humano é tremendamente difícil.
Pois, somos não só ignorantes, no sentido de que não sabemos quais serão as consequências futuras das nossas ações, mas que também temos que administrar, a todo momento, a delicada equação entre nossa inteligência, nossos desejos, vícios de temperamento com os quais nascemos e outras tantas corrupções morais que internalizamos dos outros, principalmente na infância dos nossos pais.
Daí que culpabilizar inteiramente uma pessoa pela vida que se tem ou se teve é algo bastante maldoso.
Considerações finais
Conclui-se das reflexões acima que os homens sofrem por muitos motivos, a começar pela natureza de que são feitos.
Assim, sofrem porque nascem com temperamentos difíceis; porque aprendem coisas equivocadas com seus pais e repetem depois; porque fazem coisas erradas e se culpam; porque se entregam às cegas e sem peias aos seus impulsos; porque querem ser bons e não conseguem; porque têm dificuldade de se tratarem bem; ou simplesmente porque são azarados demais.
Nesse aspecto, compreender o sofrimento humano como parte da difícil e heróica tarefa que nos foi incumbida, e não como fruto da corrupção moral dos homens, é, penso eu, um caminho promissor para se começar a amá-los.
Pois, parafraseando meu amado escritor Thomas Mann, “não considero estranho a mim nada daquilo que é humano”. (Mann, 1954).
Termino este texto com um poema lindíssimo enviado por um dos meus pacientes, da autoria de Leandro Goes de Barros*, que tem tudo a ver com estas minhas reflexões:
Se eu conversasse com Deus
Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando se chega pra cá?
Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que é que ele não fez
A gente do mesmo jeito?Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Vivemos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?
*Leandro Gomes de Barros é paraibano, nascido em 19/11/1865, no Município de Pombal, é considerado o rei dos poetas populares do seu tempo.
