Como objeto histórico, as instituições psicanalíticas reforçam e aprofundam em seu dinamismo interior mazelas sociais que elas próprias pretendem combater no nível do discurso e das ações pontuais, como tem sido o caso recente das cotas para indígenas e negros poderem treinar-se como analistas.
Enquanto isso, sua estrutura intrinsecamente elitista e mercadológica continua a mesma, por não ser do menor interesse discuti-la e alterá-la.
O argumento falacioso usado para tornar o treinamento analítico impagável para os pobres porventura vocacionados e sacrificial para os obstinados da classe média é astuto e mascara bastante bem temores e interesses que estão por trás disso.
Justifica-se o custo exorbitante do treinamento analítico dizendo tratar-se de prática nobre e exigente para o profissional que a empreende, no caso o analista didata, que exigiu dele muitos anos de investimento.
Por trás de tal discurso está o fato de que tornar-se analista didata é por vezes a única forma de recuperar o enorme dispêndio financeiro feito, sendo a análise didática um grande quinhão para se ganhar dinheiro dentro dos institutos.
Distorção que pode acabar por desvirtuar a função, que deveria ser formar bons analistas e não acumular dinheiro.
O argumento falacioso de que ofícios nobres merecem ser muito bem remunerados cai por terra quando se compara o ganho de um analista e de um enfermeiro, por exemplo, não se vendo porque um seja mais nobre que outro.
Elitismo nos meios psicanalíticos
Outro aspecto presente neste argumento é o preconceito de classe inconscientemente arraigado que vê na caricatura do pobre “sem cultura” séria ameaça ao elevado status cultural no qual se insere a psicanálise.
Nesta fantasia preconceituosa, aceitar pobres porventura vocacionados para treinamento analítico significaria fazer cair o nível da formação.
O mesmo argumento de quando se discutia a entrada dos pobres por cotas nas universidades públicas, temor que não se mostrou justificável.
Em se tratando da psicanálise, aprender a dissociar traços de caráter e classe econômica torna-se fundamental, pois há pobres e ricos tolos, assim como pobres e ricos interessantes; aspectos que dependem mais da pessoa que de sua origem social.
Um dos impactos sinistros dessa indissociação é o psicanalista rico ter uma visão caricatural do pobre.
Democratizar a psicanálise
Em suma, democratizar de fato o treinamento analítico implicaria em tornar mais justo e realista o seu valor, sem prescindir da qualidade, o que não é vantajoso nem em termos monetários, nem simbólicos: no primeiro, porque implicaria em aceitar ganhar menos; no segundo, porque democratizar o ofício do psicanalista significa perder status, poder e, principalmente, mercado.
Este é outro motivo para dificultar muito o acesso: criar a ideia de quem está dentro é especial e superior em relação aos demais.
Efeitos sobre a classe média
Outro impacto sinistro do elitismo mercadológico que se vê nos institutos de treinamento analítico afeta em cheio pessoas da classe média, cuja definição é aquela que odeia ser equiparada aos pobres e sonha um dia ser aceita entre os ricos.
São jovens psicólogos, psiquiatras e afins que se formam com dificuldade e consomem vorazmente seus cursos, simpósios, colóquios e palestras para se sentirem próximo dos “eleitos”, enquanto eles mesmos sonham um dia sê-lo.
Tendendo a se alienar mais que os pobres, tais pessoas julgam que quanto mais caro algo for, melhor deve ser, o que as fará não medirem esforços para consumirem coisas que as tornem chiques, sendo uma destas a psicanálise.
Nestes meios, portanto, será chique dizer aos colegas que se faz análise ou supervisão com x ou y, o que significará dizer que estão com os analistas mais cobiçados, invejados e caros do mercado.
Estas pessoas, caso aceitas para treinar-se, não medirão esforços para pagar o valor exigido, chegando a trabalhar dez ou onze horas por dia para pagar o equivalente a uma casa, ainda que ela própria e sua família não tenham uma.
Fatos que revelam a brutal distorção de valores nas quais a psicanálise e o treinamento analítico passam a ser objetos de consumo cujos signos revelam ao Outro sinal de status, cobiça e ascensão social, a tal ponto está nossa decadência como sociedade.
Nada mais longe do que Freud propôs como o modo como um analista deve procurar viver: com modéstia, discrição e sem pompa.
Quanto ao descrito aqui, nenhum esboço de mudança parece se avizinhar. Enquanto isso, sonha-se com o dia em que, tal como sonhou Saramago em Ensaios sobre a lucidez, nenhum eleitor compareça à eleição, pondo os políticos de cabelo em pé.
” O exercício da função de analista é o daquele que decidiu assumir o lugar de transgressor dos próprios limites na busca de sua salvação pessoal …” & “… e num sentido social, ultrapassa a ” epiderme cultural ” , projetando-se para o futuro para construir ” áreas de transformação” no sujeito e na sociedade. Essa é a sua missão ética, e poderíamos acrescentar salvacionista . ( M Tractemberg ).
Após anunciar e elucidar sua posição quanto a sexualidade infantil foi hostilizado , humilhado e ridicularizado pela sua própria comunidade , assim viveu Freud !
O que será do cientista se nele não existir a curiosidade ? O que será do analista se nele não existir a coragem de ser um transgressor de limites ?
Obrigado Freud
Obrigado Tractemberg
Obrigado A Martinez
Transgredir , verbo transitivo direto , ” ir além de ; atravessar a fronteira “