Diálogos psicanalíticos sobre o filme Oblivion (Esquecimento) à luz do pensamento de Bion.

oblivion_bx_universal-pictures_pi  Gostaria hoje de tecer algumas interpretações psicanalíticas sobre o filme “Oblivion” (Esquecimento, em português), atualmente em cartaz nos cinemas.

Como toda obra, pode ser interpretada sob diversos prismas: esta em particular pode ser compreendida sob o prisma apocalíptico (que prevê o fim do mundo por guerras intergalácticas, causada pela existência de vidas extraterrenas), sob o prisma ecológico (que prevê o fim do mundo pelo que temos feito ao meio ambiente), etc.

O prisma que irei priorizar é o psicanalítico, ou seja, aquele que aborda os aspectos internos – dos dramas, guerras e lutas que se passam dentro da mente de cada ser humano – lutas entre aspectos alienígenas / extraterrenos que nos habitam e que buscam abduzir nossa humanidade e aspectos humanos que buscam e priorizam a verdade.

O enredo:

O enredo do filme é mais ou menos este: Estamos no ano 2077 e a Terra foi devastada por uma terrível invasão alienígena (cuja liderança era estabelecida pela Tet, uma espécie de nave-mãe) que aniquilou a vida humana.   A Tet recrutou alguns humanos e através de um mecanismo tecnológico avançado reprogramou a memória deles, fazendo-os esquecer de todo o seu passado. Jack, o protagonista da história era um destes. Com isso, ele passou a “trabalhar” para a Tet (parte psicótica da personalidade, segundo Bion), concertando os drones (objetos bizarros), uma espécie de guardas que aniquilavam os “saqueadores” (humanos).

ator-estrela-o-filme-oblivion A principal ideia então é que Jack, através da reprogramação de suas lembranças, acreditava plenamente que os “saqueadores” – seus parentes humanos – eram extremamente perigosos e queriam destruir a Tet, a quem tinha que defender. Trata-se, portanto, de um potente processo de apagamento das verdades humanas que a parte psicótica da mente tenta a todo custo negar.

E é aí que o filme nos sugere discussões interessantes. Sabemos através de Bion que, assim como o alimento é essencial para o corpo, a verdade é essencial para mente. Sem ela, a mente definha e o ser humano perde sua humanidade e potencial para a criação e para o viver prazeroso – fica desmentalizado, bestializado. Por outro lado, o mesmo Bion nos ensinou que o ser humano está condenado a ter uma mente. Com isso compreendemos que ter uma mente é sentido como algo pesado e penoso para todos nós. Por isso estamos quase sempre querendo nos livrar dela, de alguma forma, exatamente como fez Jack.

Mas qual a função da mente a partir desta analogia proposta por Bion? Uma das funções primordiais da mente humana é a de digerir, processar vivências emocionais às quais estamos sujeitos o tempo todo, desde o momento em que nascemos até o momento da nossa morte.

Trata-se de experiências vivenciais próprias ao drama humano, das cesuras pela nossa condição de extrema fragilidade e labuta diária diante da vida; as frustrações naturais que os objetos nos coloca; a nossa finitude e todas as outras cesuras propostas pela nossa condição humana. Tudo isso precisa ser digerido pelo aparelho mental para poder se transformar em pensamentos pensáveis, ou seja, pensamentos que podem fazer com que aprendamos com as experiências. Se este aparelho não está funcionando adequadamente, pelos ataques feitos pela Tet (parte psicótica da personalidade), não podemos aprender com as experiências e ficamos repetindo, repetindo e repetindo.

Deste ponto de vista, Jack (assim como todos nós) era equipado internamente com uma Tet (nave-mãe alienígena que ataca a humanidade e as verdades essenciais da vida). Uma Tet que propunha a ele um apagamento das verdades e um viver mentiroso, protegido por vidros – era assim a casa de vidro que ele morava – higienizada, asséptica, clean – muito diferente de como é a vida humana quando se suporta o movimento e o caos de se estar realmente vivo.

Jack buscou atacar estas verdades, por algum motivo que o filme não permite aprofundar, embora sugira algumas possibilidades que apontam para o medo dele em aprofundar o vínculo amoroso com sua noiva (sua memória começa a se corromper no exato momento em que ele a pede em casamento – momento desenvolvimental que causa cesuras importantes na vida de um homem e também de uma mulher por reeditar experiências edípicas e pré-edípicas).

Por outro lado – e isso é muito interessante de ser destacado – foi exatamente a possibilidade de Jack poder abrigar dentro de si algum resquício do bom objeto (lembrança dele dando o anel à noiva que surgia na forma de “sonhos”, a casa abrigada em meio à floresta no meio da desertificação terrestre, os livros na biblioteca…) que o colocou novamente na rota da verdade.

Foi exatamente a repetição congelada da imagem de sua noiva dentro dele (embora ele não soubesse que ela era sua noiva) que o recolocou em contato com suas verdades internas, dando-lhe coragem para travar uma batalha contra a Tet interna que ameaçava seduzi-lo com mentiras, propondo-lhe um mundo mortalmente organizado e desertificado em termos de emoções (chamo a atenção para a expressão fisionômica desumanizada da moça que morava com ele e da ausência de calor humano na “relação” mantida entre eles).

O aceno a que algo estava errado (embora isso se configurasse mais como uma sensação do que como ideia) o levou de volta a Terra (espaço dos humanos) e a uma biblioteca em ruínas. Interessante destacar o valor simbólico do livro, que o leva de volta às verdades – lugar de memórias, de registros do passado, de reduto primordial da civilização humana e de tudo o que de mais estético e valoroso foi produzido por ela. O livro que ele encontrou e que parece ter lhe dado força para fazer o caminho de volta fazia uma referência a Homero e à sua coragem em busca da verdade, algo que serviu como combustível a Jack.

Ressalto aqui que todo aquele que parte em busca da verdade é guerreiro como Homero e como Jack. Trata-se de um processo doloroso, árduo e extremamente solitário de descida e retorno a “terra”. Em uma análise, este processo difícil e doloroso é acompanhado pelo fiel analista… Para suportar o desbravar e descortinar das verdades que foram deslocadas, destruídas e arruinadas pela Tet mental, é preciso ter alma de guerreiro, de nobre guerreiro.

Oblivion starring Tom Cruise     Neste processo de descida (ou subida?) às verdades humanas, Jack descobre (ou redescobre?) que os saqueadores pertenciam à sua raça e não eram perigosos como a sua mente esquizo-paranóide lhe contara. Podia tê-los como parceiros de guerra no combate e destruição à Tet. Numa das cenas mais bonitas do filme, Jack se encontra com seu duplo – aquela parte dele ainda inebriada pela mentira, que necessariamente precisaria ser morta para que a sua verdade pudesse surgir – momento que remete a um das etapas mais dolorosas do encontro com nossas verdades, quando partes que se apegavam em crenças mentirosas e errôneas precisam morrer e ainda não há nada palpável em que nos agarrarmos. Trata-se de um momento de mergulho no vazio, extremamente angustiante. Bion descreveu estes momentos como catastróficos.

Ao final da saga do nosso guerreiro há outra cena belíssima em que ele “debate” corajosamente com a Tet (seu sistema de crenças delirante e mentiroso). Esta lhe diz de forma sedutora que se ele ficasse ali, poderiam ser eternos, não precisariam ter que lidar com a morte ao que ele responde: Todos nós morremos, Tet. Neste momento, ao poder se reaproximar desta dolorosa, mas crucial verdade humana, a Tet pode ser questionada e perde o seu poder sedutor. A partir daí ela pode ser destruída porque perdera seu poder sobre ele.

Ressalto que este processo é muito parecido com o que ocorre em uma análise onde o paciente, acompanhado pelo analista (assim como Virgílio e Dante) parte em busca de suas verdades internas que foram soterradas, negadas e destroçadas – processo que se por um lado serviu para evitar a dolorosa experiência de estar vivo, por outro impediu o paciente de usufruir do prazer de viver. Pois, quando evitamos sofrer, ficamos impossibilitados de sentir qualquer sentimento, inclusive os bons, tal como Arnaldo Antunes descreve na música:

Socorro!

Não estou sentindo nada

Nem medo, nem calor, nem fogo

Não vai dar mais pra chorar

Nem pra rir…

                Para finalizar, gostaria de ressaltar que neste filme em especial o final é esperançoso e otimista: Jack finalmente se casa e ambos, ele e sua noiva, engravidam. Enfim, conseguem sobreviver à cesura do casamento e gerar criativamente um bebê (que representa em termos psíquicos novas ideias, novas formas de relacionamento, mais criativas e vivas).

Entretanto, na vida real, diferente da ficção, os “finais” nem sempre são felizes assim. Se por um lado nós humanos reais temos sempre a chance de nos recolocarmos nas rotas das verdades, sobretudo em momentos de cesuras propostas pela vida (morte de entes queridos, separações, impossibilidade de realizar algum projeto muito desejado, doença, etc.), por outro, nem sempre o ser humano se mostra corajoso o suficiente para guerrear bravamente com suas Tet´s internas.

De minha parte, como terapeuta, estou sempre muito esperançosa com aqueles que me acompanham neste difícil processo – acredito que por mais desertificada que seja uma mente, sempre podemos nos encontrar com um reduto mental arborizado e fresco, onde sementes possam germinar. Mas, às vezes é preciso suportarmos o fato de que muitas vezes faz-se a escolha (não consciente, é verdade) pela desertificação e assassinato das verdades e emoções humanas, algo que também precisamos suportar – algo que nos convoca quotidianamente, sobretudo como terapeutas, a refletirmos sobre a nossa condição de potência / onipotência / impotência.

Penso ser crucial mantermos uma visão realista – nem otimista, nem pessimista – sobre estas escolhas humanas (um filme que faz exatamente o contraponto a este “final feliz” de Oblivion é o filme “Imensidão Azul”, que vale a pena ser visto).

E, para terminar mesmo, acredito que o modo de vida atual, regido pelo uso excessivo da tecnologia mediando (ou substituindo?) as relações humanas, pelo consumo exacerbado, e pela evitação das emoções humanas, contribui em grande medida para que as nossas Tet´s internas trabalhem a todo vapor e nos coloquem na contramão da nossa humanidade.

3 comentários em “Diálogos psicanalíticos sobre o filme Oblivion (Esquecimento) à luz do pensamento de Bion.”

  1. Não assisti o filme, mas de antemão só pelo seu comentário fiquei interessada, esse seu final:
    “consumo exacerbado, e pela evitação das emoções humanas, contribui em grande medida para que as nossas Tet´s internas trabalhem a todo vapor e nos coloquem na contramão da nossa humanidade.” provocou a minha emoção, pois é exatamente assim que eu me sinto frente essa revolução global tecnológica.
    Um olhar minucioso e sensível sobre as grandes transformações desse século, é assim a minha compreensão sobre seu artigo.

    belo e reflexivo,

    abç

    Rose

    1. Rose, bom dia. Se puder assista ao filme. É bastante interessante pois de alguma forma eu penso que ele reflete algo que os artistas tem intuído como sendo o futuro da nossa civilização na Terra. E fico feliz que tenha gostado dos meus comentários e que eles tenham ido ao encontro de seus próprios sentimentos com relação ao contexto atual. Reafirmo mais uma vez algo que eu penso ser fundamental: o avanço tecnológico é maravilhoso, assim como a internet. Tudo irá depender do modo como o homem utiliza este instrumento – como uma forma lúdica de investigar o mundo e a si mesmo ou como forma de se evadir de seus próprios sentimentos penosos, perdendo com isso suas características humanas (pois só o homem é capaz de sentir e pensar sobre si mesmo). Um grande abraço!

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