Os sons da vovó

maquina de escreverA avó era surda como uma múmia. Incomunicável com o mundo, habitava um universo próprio, todo seu. Tinha medo de sair dele. Pavor mesmo. Sons humanos soavam em seus ouvidos como gritos horripilantes. Virgínia, a neta, tinha paixão pela esquisitice da avó. Suas peles flácidas, seus olhos caídos, sua tez branquíssima fazia Virginia se lembrar de um fantasma ou de uma bruxa. O silêncio da morte se aproximando era completamente misterioso para ela.

Havia dias em que a mãe de Virgínia, por um motivo qualquer, pedia para que a menina tomasse conta da velha. Eram momentos de puro terror e fascinação. A avó, muito velha e branca, era colocada sentada imóvel em uma cadeira de balanço antiga bem em frente à janela que dava para um pequeno jardim lateral da casa. A miúda se sentava, dura, ao lado da avó, em uma pequena cadeira. Ambas permaneciam imóveis a tarde toda. Virginia punha-se a observar atentamente cada pequeno movimento da velha, enquanto pensava com os seus botões:

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Identidade

maquina de escreverQualquer esforço em direção ao telefone era impossível para mim. Havia uma premonição tenebrosa se formando: a de que quanto mais eu caminhasse para o abismo, mais desgarrada e infiel aos padrões eu me tornaria. Uma revolta crepuscular queimava em meu peito e eu dizia a mim mesma:

Não. Não quero mais esta selvageria mentirosa. Todos estão doentes, verdes e desmantelados. Por que só eu percebo isso?

Minha única vontade era enrolar-me em mim, como caracol enegrecido, cauda junto de cabeça, pele junto de pele, até formar uma só coisa, um só nada. Até sumir.

Brotava em mim, de forma desenfreada, um puro desejo de não ser mais. Nada de telefonemas, de metáforas, de meios sorrisos, de olhares que se desencontram das palavras. Meu ser clamava pela verdade. Sem ela, me recuso agora a viver. O telefone olhava para mim, com ar impaciente. Precisava ligar para o banco, resolver pendências. É que eu havia perdido minha identidade e não sabia onde ela havia ido parar. O problema – e nisso residia grande parte da minha vergonha – eu havia sido descoberta em minha ausência de identidade pela linda moça do banco que, cheirosa e malévola, atendia sorridente aos clientes do dia.  Descobri que estava completamente sem identidade justo diante daquela linda moça. Fiquei estarrecida, envergonhadíssima. Ela, babando de prazer por ver minha dor e culpa, disse triunfante, para todo mundo ouvir:

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A menina e o cão

maquina de escreverA menina era tristonha e acanhada. Sentia impropriedade no fato de existir. Seu andar era como de gato, esgueirando pelos cantos. Certo dia, seu pai Josiberto trouxe a salvação: um belo labrador cor de mel. Pura inspiração. Seus olhos vivazes eram como uma humilhação para a menina tísica. Mas como que por desordem do destino tornaram-se unha e carne. Melhores amigos mesmo. Obviamente o cão dava por certo o fato de sua existência pacificada, bem instalada em seu corpo sólido e pouco conhecedor de si. Já a menina, instável na arte de amar, caiu doente, literalmente, de amor pelo nobre cão. Passou semanas se recompondo em sua cama, com o cão-fiel ao seu lado. Pobre menina. Ninguém havia ensinado a ela os perigos do amor!

Seu pai Josiberto e sua mãe Marina eram pessoas dotadas de coração, mas simples nas aquisições do sentir. Para eles, preto era preto e branco era branco. Sem mais conversações. E a menina, raptada pelas gradações subterrâneas do sentir, tinha fome de coração. Neste ritmo sonhador de ser, passava horas a fio olhando para o Nada, ao que sua mãe perguntada, meio enfezada:

O que é que tanto olha aí, menina? Vem me ajudar com a louça.

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Marina e o gato morto

 maquina de escreverMarina despiu-se em frente o espelho. Procurava suas próprias entranhas e vísceras. Enquanto fazia este gesto maquinal, fora invadida por uma cena infernal: Hugo, Marina e sua gata Frida deitados na cama. Três montes de vísceras, soltas no espaço. Presas somente por um invólucro fino e irresoluto de pele.

 – Sim, pensou Marina. Somos todos uns sacos de vísceras e órgãos caminhando por aí.

Acontece que na manhã do dia em que se descobrira vísceras e órgãos, Marina teve um encontro com a sinistra morte. Enquanto saia para o trabalho, ela topou com um gato duro e morto. O cheiro de carnes putrefatas já começava a impregnar toda a rua. Ela, com seu olhar sempre tão infantil e inaugural, sentou-se escondida do outro lado da calçada, atrás de uma árvore. Queria checar a reação das pessoas frente àquela cena abissal: um gato duro, morto, sendo comido pelos vermes. Marina permaneceu ali por horas. Transeuntes passavam e simplesmente negavam a existência morta do gato.

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