Marina e o gato morto

 maquina de escreverMarina despiu-se em frente o espelho. Procurava suas próprias entranhas e vísceras. Enquanto fazia este gesto maquinal, fora invadida por uma cena infernal: Hugo, Marina e sua gata Frida deitados na cama. Três montes de vísceras, soltas no espaço. Presas somente por um invólucro fino e irresoluto de pele.

 – Sim, pensou Marina. Somos todos uns sacos de vísceras e órgãos caminhando por aí.

Acontece que na manhã do dia em que se descobrira vísceras e órgãos, Marina teve um encontro com a sinistra morte. Enquanto saia para o trabalho, ela topou com um gato duro e morto. O cheiro de carnes putrefatas já começava a impregnar toda a rua. Ela, com seu olhar sempre tão infantil e inaugural, sentou-se escondida do outro lado da calçada, atrás de uma árvore. Queria checar a reação das pessoas frente àquela cena abissal: um gato duro, morto, sendo comido pelos vermes. Marina permaneceu ali por horas. Transeuntes passavam e simplesmente negavam a existência morta do gato.

Não. Isso eu não vou aguentar. Preciso enterrar meus mortos. 

Arrumou uma pá sabe-se lá onde e rumou, convicta, ao corpo duro do felino espichado. Nunca havia parado para pensar como ficamos duros e retesados depois de mortos. Pegou o gato por uma de suas patas espichadas. Reparou que seus olhos esbugalhados saiam de suas órbitas oculares. Saltavam para fora como bolas de gude explodindo contra a parede. Sentiu nojo e repulsa. O mesmo nojo e repulsa que sentiria alguém que tocaria em seu corpo morto quando este já estivesse fedendo, duro e frio, como o corpo daquele gato.

Com seus braços finos de gravetos, Marina cavou um buraco fundo, longe dos olhos da civilização, que é onde devem ficar os mortos. Rezou:

– Querido Deus, espero que este gato tenha tido uma vida longa e feliz. 

Tinha indícios para pensar que sim, que aquele gato havia sido feliz, pois ele tinha uma pança generosa e roliça. Devia ser de alguém. Nesse momento o peito de Marina se apertou com intensidade. Pensou no desespero do dono daquele lindo gato que provavelmente o esperaria por noites a fio sem saber do seu paradeiro, acalentando uma esperança miúda de que o felino uma hora ou outra iria aparecer.

Pobre dono do gato. Pobre gato. Espero que tenham sido felizes um com o outro. .

Depois de enterrar aquela bola de pelos dura e fria e fazer sua pequena prece dirigida ao Deus-natureza, Marina partiu. Estava atrasada para os seus afazeres que logo a distraíram do fatídico destino do gato, do fatídico destino de todos nós.

Mas, eis que à noite, depois de ter amado seu marido Hugo, enquanto preparava-se para cair no abismo do sono – que é uma morte à prestação – eis que se vê às voltas com a cena grotesca: Marina, Hugo e Frida, três sacos de vísceras deitadas sob a cama.

Foi aí que Marina pulou, assustando a todos, inclusive ela própria e começou a tirar toda a roupa. Queria chegar ao fundo das coisas. Hugo e Frida vendo aquilo devem ter pensado que Marina havia enlouquecido. Ela que sempre fora considerada esquisita, que é um jeito educado dos civilizados chamarem alguém de maluco.

– Sim, vísceras. Quero vê-las finalmente! Marina gritava frenética. Venham a mim. Quero chegar ao fundo. Mostrem-se com todo o seu despudor, minhas vísceras, meus órgãos, meus longos e viscosos intestinos repletos de fezes, meu sangue venoso, meus dentes, meus ossos, meu cérebro e todos os vermes que habitam meu corpo e que meus olhos não vêem, mas que agora eu sinto existirem dentro de mim.

É que nesse momento, por um estado de profunda comunhão com o bicho morto e enterrado que à uma hora destas já estava sendo devorado pelos vermes, Marina viu tudo o que precisava ser visto: ela viu a morte.

– Sim! Somos um saco de vísceras que será comido tão logo pelos vermes. Era o que Marina teria dito a quem a questionasse o porquê dela se comportar como uma louca diante do espelho.

Ela também diria com máxima fúria:

– Louco é você que não pensa nisso. Você que vive dormindo para a realidade; que vive como sonâmbulo; que não presta a atenção nos vermes que te comem todos os dias; que pula o gato morto fingindo que ele não existe; que se arruma e se perfuma todas as manhãs  achando que pode barrar o processo. Você é louco! Não eu!

Depois deste estado de êxtase, que Hugo e Frida tiveram que ajudar a conter, Marina caiu em um sono profundo. Nunca mais acordou.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.