A menina e o cão

maquina de escreverA menina era tristonha e acanhada. Sentia impropriedade no fato de existir. Seu andar era como de gato, esgueirando pelos cantos. Certo dia, seu pai Josiberto trouxe a salvação: um belo labrador cor de mel. Pura inspiração. Seus olhos vivazes eram como uma humilhação para a menina tísica. Mas como que por desordem do destino tornaram-se unha e carne. Melhores amigos mesmo. Obviamente o cão dava por certo o fato de sua existência pacificada, bem instalada em seu corpo sólido e pouco conhecedor de si. Já a menina, instável na arte de amar, caiu doente, literalmente, de amor pelo nobre cão. Passou semanas se recompondo em sua cama, com o cão-fiel ao seu lado. Pobre menina. Ninguém havia ensinado a ela os perigos do amor!

Seu pai Josiberto e sua mãe Marina eram pessoas dotadas de coração, mas simples nas aquisições do sentir. Para eles, preto era preto e branco era branco. Sem mais conversações. E a menina, raptada pelas gradações subterrâneas do sentir, tinha fome de coração. Neste ritmo sonhador de ser, passava horas a fio olhando para o Nada, ao que sua mãe perguntada, meio enfezada:

O que é que tanto olha aí, menina? Vem me ajudar com a louça.

Nestes instantes, a menina se sentia violentamente roubada de suas delicadezas e era atacada por uma tristeza sem fim, que demorava dias a passar. Nestes arroubos de coração, ela deixava de comer, de banhar-se e até o movimento de seus pequenos membros era um esforço brutal para ela. Mas, com a chegada de Teseu – era assim que ela chamava o cão cor de mel – sua vida se transformara, ou melhor, seu íntimo ser se arco-irizara. Ela pensava, quietinha, que nunca pudera imaginar a existência de um ser vivo capaz de estar em comunhão plena com outro ser: olhos olhando olhos, nariz cheirando nariz. Tudo em um movimento sincronizado de pura magia e compreensão. Às vezes, nesta dança, chegava a se assustar, pois parecia que seu pequeno companheiro acompanhava até mesmo seus pensamentos mais íntimos.

Para provar este fato bem provado, certo dia a menina, devagarinho na cama, derramara uma lagrimazinha, tomada que estava pela beleza embelezada de seu sonho. O cão, em um movimento mais que rápido, pulara em cima dela para lhe lamber a lágrima. Como ele intuíra que a menina estava fazendo nascer uma lágrima naquele exato instante? Isso era puro mistério, daqueles que nenhum homem com sua bruteza natural vai poder desvendar. Neste vislumbre lusco-fusco, de relação enfeitiçada, ambos cresceram juntos. A menina se floreou em mulher e o pequeno Teseu se tornou tão nobre – ou até mais – que o rei acolhedor de Tebas. Mas, como a arte imita a vida e nesta sempre há interrupções abruptas do bem-querer, que fazem quebrar qualquer coração mais sentimental, esta estória de amor também não teve um final feliz.

Com o passar dos anos, Teseu, pelo próprio peso mortífero da idade, que pesa em gosto e sombra a todos os viventes e respirantes seres, foi se tornando carrancudo e avesso ao contato com a menina-mulher. Ela, que fora feita para puro-amar, não compreendia esta mudança do seu tão fiel amigo. A menina só crescera por fora e ainda não estava habituada as funduras da vida, aos dissabores do envelhecer e do tão fatídico encontro com a morte. Certo dia, quando Teseu já estava bem velhinho, a menina-mulher chegou do seu trabalho e seu fiel companheiro havia partido para o mais-além. A menina, muito sensível às dores do existir, não suportou tanto sofrimento e pesar e decidiu, sem decidir, partir também. Sua vida não fazia mais sentido sem Teseu. Recolhida como formiga em seu pequeno leito, fechou os olhos para nunca mais abrir. Morreu como nasceu: como um suspiro.

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