A Peste da Psicanálise.

              Freud - PsicanáliseAntes de iniciar minhas reflexões, gostaria também de comentar que este texto foi suscitado pelo ótimo encontro que tivemos no evento “Psicanálise e Universidade”, ocorrido em Ribeirão Preto no final do mês passado (26 de maio). Neste encontro, que foi muito frutífero para mim, havia um “discurso comum” de todos os participantes que era o incômodo frente à uma visão de homem mecanizada, fragmentada e organicista muito disseminada pela Psiquiatria e pela cultura atual em geral. Como possibilidade de luta e resistência, todos eles apresentaram a Psicanálise como proposta para humanizar o contato de estudantes de medicina, psicologia e áreas afins com seus pacientes. Enfim, para humanizar o humano…

A previsão de Freud:

               Quando Freud viajou com Jung à América e divulgou pela primeira vez a Psicanálise no continente, ele perguntou ao colega, de forma irônica, mas também realista, se “eles” (os americanos) sabiam que ambos estavam levando a “peste” ao novo mundo. Creio que ao dizer isso, Freud já estava tendo uma captação profunda das resistências que sua ciência recém-nascida iria enfrentar.

               Sigmund Freud Mas, porque Freud se referia à sua ciência recém-criada como sendo “a peste”? Se pensarmos do ponto de vista histórico, a Psicologia, criada como ciência no século XIX, nunca foi considerada “uma peste”, mas a Psicanálise sim.

                Em primeiro lugar acredito que a Psicologia não é “a peste” porque fora criada dentro dos ditames tradicionais da Ciência, cujo objetivo último é descrever, de uma forma que às vezes me parece circular e óbvia, as leis do comportamento visível (grifo meu).

                Já a “peste” da Psicanálise teve, desde o início, a proposta fundante de desvelar o que é invisível ou, dito de outro modo, o que está inconsciente no comportamento humano tornando explícito “aquilo que não queremos ver de nós mesmos”. Desde então, várias ciências humanas, dentre elas a Sociologia e a Antropologia, vêm brigando com a “peste”, pois a consideram uma anti-ciência que desmonta todas as utopias sociais possíveis.

                Outro dia estava conversando com um colega da área social e eis que surge o seguinte mal-estar: ele apregoava sua crença de que haveria no futuro inúmeras possibilidades de nos organizarmos em comunidades que pudessem fazer frente ao “mal” do capitalismo. Nestas comunidades, dizia ele, iria reinar a paz e a harmonia entre os pares. Eu, intrigada com o seu grau de idealismo, propus a ele pensar que o “mal” não estava somente fora, no capitalismo, mas que havia também um “mal” dentro, inerente à condição humana que era próprio e derivado dos impulsos e que este “mal interno” não poderia ser negado. Se não fosse assim, como ele poderia explicar tantas mortes no trânsito, tantas guerras sangrentas, tanta violência…

                E mais, se o capitalismo é um sistema criado pelos homens que visa à acumulação do capital nas mãos de uns poucos em detrimento da exploração de muitos, como poderíamos explicar a organização da sociedade nestes moldes sem partirmos da premissa de que haveria um desejo humano pelo poder e a ação de impulsos destrutivos que fizessem este mesmo homem explorar e espoliar seu “semelhante”? Afinal, o capitalismo não é uma coisa ou uma entidade externa ao próprio homem. Ao contrário, fora criado e executado por este.

                Ele, visivelmente irritado, disse que não era possível conversar com “psicólogos”  porque eram extremistas demais. Fiquei surpresa com a sua reação, mas depois compreendi o seu furor. Eu estava cometendo uma falta de educação que era trazer a tona o que precisava ficar negado que, naquele caso, era o reconhecimento da existência de sentimentos de ódio e de maldade, reconhecimento este que sempre gera angústia e dor.

Recorrendo à teoria:

                E aqui faço uma pausa para explicar teoricamente este mecanismo. Segundo nos ensinou Melanie Klein, quando o ego do bebê (e o nosso também) está muito frágil para suportar reconhecer a maldade e o ódio principalmente com relação ao seio, o bebê irá projetar estes sentimentos intoleráveis fora de si. Esta projeção pode ser feita num objeto específico (numa pessoa, por exemplo) ou pode ser projetado de maneira mais extensiva, no mundo todo, na nação vizinha, nos judeus, nos homossexuais ou no capitalismo. Klein frisa que este é um mecanismo de defesa necessário e muito bem vindo já que o bebezinho ainda não suporta enxergar a realidade total, sem fazer dissociações ou fragmentações. Sem desconsiderar a importância crucial deste mecanismo de defesa que é, em última instância, nos livrar da dor, o problema é que quando este mecanismo de defesa projetivo é usado maciçamente começamos a habitar um mundo binário, ou seja, um mundo dividido e cindido em bons e maus, em mocinhos e bandidos e esta percepção parcial impede que tenhamos uma apreensão global das situações vividas.

                Outro dia estava lendo um livro muito interessante do Marcelo Gleiser chamado “A dança do Universo” e ele descrevia este mesmo mecanismo mental, embora em outros termos. Segundo ele, desde os primórdios do homem, nós tentamos compreender de onde viemos, ou seja, como o Universo foi criado e por não termos recursos cognitivos e intelectuais para compreender conceitos tão abstratos como o nada, a ausência de tempo e espaço e o infinito, nós necessariamente passamos a utilizar recursos binários para “explicar” como tudo surgiu. Notem como nós utilizamos estes binarismos para compreender e organizar nossos sentidos: preto e branco, claro e escuro, ausência e presença, etc. Segundo ele, foi somente com o nascimento da física quântica, área científica ainda muito incipiente, é que estes binarismos passaram a ser questionados.

                Vejam que a teoria das posições esquizo-paranóide e depressiva explicam perfeitamente bem a necessidade humana de manter estas percepções binárias e cindidas. Esta mesma teoria também explica a intenção humana, tão velha quanto a própria humanidade, de construir utopias de que um dia teremos um mundo melhor. Da mesma forma, a teoria kleiniana explica perfeitamente bem as teorias catastróficas sobre o fim do mundo e tudo mais. Penso que a Psicanálise propôs uma verdadeira revolução na forma de pensamento humano quando considerou que toda a maneira de significarmos o mundo e a nós mesmos deriva, sobretudo, de mecanismos mentais que podem engessar ou expandir nossa capacidade de pensar. Bion foi quem, de maneira mais extensiva, ampliou esta discussão.

                Outro dia conversava com minha analista, e ela me dizia: “a verdade está aí para ser vista. Basta observá-la”. De qual verdade ela estaria falando? Não da verdade com V maiúsculo, a verdade moral, universal e que pretende domesticar o pensamento humano com explicações causais e simplistas, explicações estas que normalmente estão alçadas numa tentativa de eleger um bode-expiatório: o problema é o capitalismo! O problema são os EUA! O problema é a pobreza! Todas estas são visões que deformam e fragmentam a realidade e, portanto, estão ancoradas num funcionamento tipicamente esquizo-paranóide (ver Melanie Klein).

               litografia de Escher A verdade da qual minha analista falava e que eu compartilho é a verdade que comporta em si contradições e paradoxos (por exemplo, quando eu sou capaz de perceber que os mesmos seres humanos que me chateiam são aqueles que me proporcionam desenvolvimento e expansão). A verdade é que não existem mocinhos e bandidos como as novelas pretendem vender. A verdade é que não existem culpados e inocentes. Esta visão binária de mundo (bom e mau, certo e errado, feio e bonito) é um recurso precário que nossa mente encontra para colocar alguma ordem no caos e para suportarmos o fato de termos de lidar o tempo todo com o desconhecido. E é por isso que toda esta discussão sociológica e / ou psicológica que apregoa causas, culpados e reféns me irrita às vezes.

                Mas, retomando a provocação inicial – por que Freud disse que a Psicanálise era a “peste”? Penso que é porque ela nos lembrar que quando elegemos um culpado, estamos colocando nele aspectos odiados, negados e excindidos nossos, que não podemos reconhecer ainda como sendo nossos. Esta é a peste! E é por isso que a Psicanálise é sempre tão atacada: porque ela nos convida o tempo todo a nos responsabilizarmos pelo sublime e pelo medíocre que há em cada um de nós. E é por isso que penso também que nossa relação amorosa e interna com a Psicanálise tem que ser sempre refeita e reparada dos estragos que nós fazemos a ela.

                Abraços a todos.

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