Um olhar psicanalítico sobre o ritual do casamento.

cinderela

Desde pequeninas, nós mulheres,  exercitamos e construímos nossa feminilidade, sendo o ritual simbólico do casamento uma das concretizações inconscientes disso. Pois, como disse Simone de Beavouir, não se nasce mulher, aprende-se a ser.

Nesse aspecto, apesar de que, desde a revolução feminista, os papeis tradicionais da mulher de esposa e mãe tem sido duramente questionados como forma de submissão feminina (e com razão), na prática, o ritual do casamento ainda continua a ser uma necessidade simbólica premente na elaboração da feminilidade de uma mulher.

A visão da psicanálise sobre o ritual do casamento

Compreende-se na psicanálise que os rituais de passagem marcados pela cultura (festa de debutantes e casamentos, por exemplo) auxiliam a jovem no doloroso luto que ela deve fazer no sentido de abandonar sua identidade infantil para tornar-se, de fato, mulher.

Rituais que servirão para ela ir paulatinamente processando, em nível individual, a marcação da passagem do tempo e, no nível coletivo, a confirmação social de tal crescimento, o que se vê, por exemplo, na importância que a certidão de casamento tem como documento na vida dos casados.

Nesse aspecto, acompanho mulheres na clínica que vivem estados depressivos perenes porque nunca se casaram oficialmente com seus parceiros, o que é interpretado inconscientemente por elas como uma dolorosa recusa, por parte deles, em assumi-las de verdade. A tal ponto o casamento mexe com a fantasmática da mulher acerca da sua feminilidade.

Ressalta-se que a metamorfose da menina à mulher é um longo e delicado processo que envolverá sua relação com os pais, que deverão ser paulatinamente abandonados como objetos de amor infantil para que ela possa criar sua própria família. Luto necessário ao crescimento no qual muitas falharão, por terem uma relação de apego excessivo com os mesmos.

Preocupações obsessivas com pequenos detalhes do casamento e a necessidade premente de fazê-lo uma festa triunfal ou extratosférica podem, nesse aspecto, serem compreendidos como dificuldades por parte dos noivos de viverem este doloroso processo. O que explica, depois, o divórcio tão rápido.

Na atualidade, onde tudo se transforma em um grande show de superfialidade artifical, muitos rituais de casamentos infelizmente são vividos desta forma.

Elencarei agora algumas das angústias inconscientes que a jovem mulher enfrenta às vésperas de subir ao altar, a partir da fábula “Cinderela” dos irmãos Grimm.

A fábula da Cinderela:

A fábula conhecida como Cinderela ou Gata Borralheira possui várias versões. Uma delas foi elaborada, em 1810, pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm – dois alemães que se dedicaram à criação e registro de diversas fábulas infantis. Muitas de suas fábulas foram modificadas posteriormente por serem consideradas violentas demais para as crianças.

Aí vai um breve resumo da fábula Cinderela…

A mulher de um homem muito rico estava muito doente. Ao perceber a proximidade da morte, chamou sua única filha ao leito e disse a ela para ser boa e piedosa com Deus e que ela (a mãe) estaria sempre olhando por ela. Dito isso, a mulher morreu.  Durante todo o inverno rigoroso, a jovem visitou e chorou sobre o túmulo de sua mãe. Chegada à primavera, seu pai encontrou outra esposa com quem se casou. Esta esposa tinha duas filhas que eram bonitas por fora, mas feias e más por dentro. Tanto a madrasta como suas filhas tratavam a jovem moça muito mal – forçavam-na a limpar a casa, a vestir roupas velhas, a dormir no chão e a cozinhar, lavar e passar. Derramavam, só por maldade, ervilhas e lentilhas pelo chão só para que ela as catasse, uma a uma. Como a moça estava sempre suja e empoeirada as filhas da madrasta lhe deram o nome de Cinderela – nome que remete a borralho, sujeira em inglês. Certo dia, o pai estava indo à feira e perguntou às moças o que elas queriam. As filhas da madrasta disseram que queriam belas jóias e vestidos. Cinderela pediu que o pai lhe trouxesse o primeiro galho de árvore que batesse em seu chapéu. Assim foi feito. Cinderela plantou este galho no túmulo de sua mãe e, de tanto chorar sobre ele, nasceu ali uma bela árvore. Todos os dias Cinderela chorava e rezava sob a árvore e passarinhos brancos vinham realizar os seus desejos. Um belo dia foi anunciado que o filho do rei faria uma festa para escolher sua noiva. As filhas da madrasta ficaram alvoroçadas. Cinderela também queria ir, mas não tinha nem roupas nem sapatos. Além disso, tinha que catar as lentilhas e ervilhas que foram derrubadas de forma maldosa pela madrasta e suas filhas. Pediu ajuda de suas amigas pombinhas, que rapidamente lhe ajudaram. Triste por não ter roupas adequadas, foi ao túmulo da mãe e pediu “Balance e se agite, árvore adorada. Me cubra toda de ouro e prata”. O passarinho lhe deu um lindo vestido de festa e sapatos brilhantes. Assim, Cinderela foi ao baile e dançou a noite toda com o príncipe, encantado com sua beleza. No momento de ir embora, o príncipe quis acompanhá-la até em casa para saber quem era sua família, mas Cinderela fugiu dele e se escondeu no pombal. O príncipe ficou em frente à sua casa até o pai da jovem aparecer e lhe questionou quem era aquela moça com quem ele tinha dançado. E o pai pensou: “Deve ser Cinderela”. Na noite seguinte, houve mais um baile e Cinderela surgiu com um vestido ainda mais belo. No final da noite, novamente se escondeu do príncipe, mas agora no topo de uma árvore. Na terceira noite, tudo se repetiu, mas desta vez o príncipe, já sabendo da fuga de sua amada, foi mais esperto e resolveu passar piche na escadaria do palácio – assim, o sapatinho ficaria preso lá e ele saberia, finalmente, quem era aquela jovem dama. Na manhã seguinte, dirigiu-se à casa do pai de Cinderela e disse que só se casaria com a dona daquele sapato. As filhas da madrasta experimentaram o sapato, que ficou muito apertado. Desesperadas, uma delas cortou o calcanhar e outra o dedão do pé, mas o príncipe notou o sangue e descobriu o engodo. Perguntou se havia mais alguma moça na casa e o pai disse que sim, que havia a filha raquítica de sua ex-mulher. O príncipe pediu para vê-la e experimentar o calçado nela. Ao vê-la, imediatamente a reconheceu. Além disso, o sapato serviu perfeitamente. No dia do casamento do príncipe com a Cinderela, embora a madrasta e suas filhas estivessem com muita raiva, queriam voltar a ser amigas da jovem. Mas, as pombinhas furaram os olhos das duas irmãs, punindo-as por tanta maldade e inveja.

Análise da fábula pelo vértice psicanalítico

Observa-se na fábula de Cinderela que duas coisas devem ocorrer juntas, para que a feminilidade da jovem mulher se estabeleça: que ela consiga se separar da mãe, o que significará enfrentar o ódio e inveja desta pelo crescimento da filha, e que o pai a endosse e reconheça finalmente como mulher.

Isso dependerá, no primeiro caso, da rivalidade e ódio entre ambas não serem preponderantes, e no segundo, do pai não ficar muito angustiado sexualmente por reconhecer sua filha como uma linda mulher. Nesse aspecto, não é à toa que quem “cede a mão” da filha ao futuro marido é sempre o pai da noiva, o que pode lhe despertar, dependendo do caso, orgulho ou ciúme.

Já no caso da mãe da noiva, o que deverá ser elaborado, dentre outras coisas,  é o doloroso sentimento de que a filha é jovem e tem todo o tempo do mundo pela frente, enquanto ela própria envelhece e não é mais bela. Situação muito comuns de se ver em casamentos: a mãe da noiva competindo em beleza com ela própria.

Eu conheço uma pessoa que, no dia do seu casamento, surpreendeu-se com sua própria mãe vestida de branco, como ela!

Considerações finais

Conclui-se que o dia do casamento é um momento que pode ser muito bonito e inesquecível na vida dos noivos, desde que ele signifique a consolidação de um longo e angustioso processo de amadurecimento interno, que se concretiza no desejo público de dois adultos formarem um casal. O que está longe de ocorrer na grande maioria dos casos.

Assim como no caso da maternidade, penso que o casamento tem sido investido em nossa sociedade atual de uma forte idealização, o que não contempla a complexidade emocional implicada neste delicado processo que eu busquei descrever aqui.

O que pode tornar os noivos culpados e solitários para lidar com tanta carga emocional sozinhos. Ou então, perdidos em meio à tules, vestidos, penteados, e convites luxuosos de casamento, que não determinam em nada a beleza do momento.

Ao contrário do amor profundo que une ou não aquelas duas pessoas. Este sim fundamental para um casamento seja belo e emocionante.

4 comentários em “Um olhar psicanalítico sobre o ritual do casamento.”

  1. Adorei o texto sobre o casamento. Fico encantada com suas análises psicanalíticas. Parabéns… Um grande abraço!!!

    1. Olá Rosangela. Obrigada pelo carinho! Sinta-se à vontade para comentar os textos e fazer sugestões. Abraços

    1. Patrícia, tudo bem? Para falar algo do ponto de vista do noivo temos que levar em conta as angústias que são mobilizadas pelo ritual do casamento no homem, e que tocam em pontos diferentes dos da mulher. A partir do que eu escuto de meus pacientes homens em análise, posso pensar que o casamento é um momento em que o homem é convocado a entrar em contato com algo que, na psicanálise, chamamos de angústia de castração que, em termos bem simplistas, significa o temor que o homem carrega em seu inconsciente de perder o seu pênis, ou seja, sua potência. Daí, por exemplo, os rapazes dizerem entre si que se casar é ir para a forca, ou que aliança é bambolê de otário, ou ainda, a necessidade da despedida de solteiro, como uma prática social comum entre os homens, mais do que entre as mulheres. Ou seja, no inconsciente dos homens é comum o psicanalista encontrar uma representação arcaica da mulher como um ser que vai lhe castrar a masculinidade, algo que pode ser vivido com grande dose de angústia. De certo modo, o casamento monogâmico, tal como é instituído em nossa sociedade, não deixa de ser significado como uma castração da potência masculina, pois, a partir dele, o homem deverá abrir mão (pelo menos nas ações) de todas as outras mulheres, para exercitar o seu erotismo com uma só, a esposa. Há ainda o aspecto inconsciente que associa a mulher à uma segunda edição da figura materna. Portanto, para o homem, ambas as representações de mulheres – a esposa e a mãe – representarão, a um só tempo no inconsciente, a mulher cuidadora, mas também um ser castrador, que quer tomar o pênis masculino, por ser ela própria, destituída de um. Sei que tudo isso é muito diferente, e que este tema mereceria um longo texto. Quem sabe eu escreva um. Desculpe-me pela concisão na explicação. Espero que tenha esclarecido algo. Forte abraço.

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