Casamento é sinônimo de infelicidade?

download (13)Ontem estava em casa me preparando para dar aula e buscando alguns minutos de relaxamento em frente à TV quando decidi “estacionar” num canal de filmes a la sessão da tarde. O nome do filme era “Forças do Destino”, nome já merecedor de alguma reflexão, pois, carrega a idéia de que estamos à mercê do destino, sem qualquer possibilidade de escolha e de engajamento diante da nossa própria vida. Será?

Bem, fui assistindo ao filme e comecei a me perceber irritada com tudo aquilo. A história, bem clichê por sinal, era a seguinte: um rapaz (Ben Afleck) tinha uma relação estável com uma moça já há muitos anos e estavam de casamento marcado. A moça era de uma família tipicamente tradicional americana, pais moderados burgueses (e, obviamente ela tinha que ser pintada como chata para deixar o telespectador torcendo para ela fosse realmente deixada no altar) . E eis que este rapaz, viajando de avião a caminho do seu casamento, conhece uma bela jovem (Sandra Bullock), aparentemente muito diferente de sua noiva: era jovem, intensa e cheia de vida.

Ao longo deste percurso, o protagonista conhece vários casais e todos eles dizem a mesma coisa: depois que nos casamos nossa vida ficou muito chata e a paixão se tornou absolutamente impossível.

Paralelamente a estas conversas (pra lá de duvidosas), ele vai vivendo com a jovem milhares de aventuras, tipicamente juvenis, tal como sumir num trem e gritar bem alto, o que provoca no telespectador imediatamente uma vontade de se libertar de todas as suas amarras internas e externas, dar uma banana ao seu chefe e sair mochilando pela vida.

Neste momento, vinha pensando que seria realmente muito mais saudável para o protagonista fazer a escolha pela jovem cheia de vida e abandonar sua noiva contida e chata. Esta até seria uma possibilidade interessante se, de fato, o amor entre eles já tivesse acabado há muito tempo e nenhum dos dois tivesse coragem de assumir os riscos de começar uma nova relação e aí a mocinha cheia de vida seria um bom pretexto para ele se arriscar e retomar sua vida nas mãos. Mas, talvez não fosse o caso (e me pareceu que não era), e aí a discussão poderia ir para outro caminho…

Então, há duas idéias importantes contidas neste filme que eu acho que valem a pena de serem debatidas: a primeira é a de que é impossível viver com liberdade e frio na barriga estando casado. Isso é verdade e não é! E a outra idéia contida, implicitamente, no filme é a de para podermos ser realmente felizes precisamos fazer “algumas loucuras”, sair do comum e do chato do quotidiano.

Retomando a primeira questão (casamento X felicidade) fico pensando se esta não é uma idéia tipicamente pós-moderna, cujo cerne ancora-se num ideário de sujeito totalmente livre de amarras e de relações (que são sentidas como chatas e penosas). Mas será que se relacionar é isso? Eu estou numa relação amorosa há muitos anos e não encontro esta chatice e peso com o qual o casamento é associado no filme.

Obviamente, são necessárias concessões e acordos, diálogo e renúncias, mas, a vida não é isso? Será possível vivermos plenamente livres o tempo todo? Isso não seria angustiante? Não será que todo este mal estar social (que nos chega sob a forma de angústia intensa nos consultórios) não é um reflexo desta busca por ausência de relações (ou de relações líquidas, como diria Bauman) e de compromissos consigo, com os outros e com a vida?

Vários autores (filósofos, psicólogos, sociólogos e psicanalistas) vem apontando para este mal-estar gerado por um certo mito de liberdade absoluta em que o sujeito fica à mercê dos seus próprios desejos, normalmente desejos onipotentes e narcísicos.

E este filme acho que reflete muito bem isso que estou discutindo. Gostaria muito que a história continuasse para mostrar como é que o casal aventureiro iria sobreviver às agruras do quotidiano, do acordar e dormir juntos, do pagar contas, etc.

É possível manter a paixão? Penso que sim, mas não aquela paixão-doença, arrebatadora que impede os amantes de se enxergarem realmente. Acredito sim, que é possível manter uma paixão pela vida, pelo seu companheiro, pelo seu trabalho, mas, esta certamente é uma paixão diferente daquela exibida no filme.

É a paixão (e não sei se este é o termo correto aqui ou se seria melhor usar o conceito de impulso para a vida do Freud) que nos move para a vida e para as relações que deveria nutrir o nosso quotidiano. Este amor pelas coisas belas da vida (que os poetas cantam tão lindamente) é que faz um casamento ser bom de ser vivido.

Penso ainda que esta busca do homem por viver alguma coisa muito intensa (como um gozo eterno) em que não haja limitações aos seus desejos e vontades é universal e esteve nos acompanhando desde sempre (tal como Freud nos ensinou no seu belo texto “Mal-estar na civilização”), mas pode nos deixar em maus lençóis quando é levado às últimas conseqüências, como tem acontecido muito atualmente.

A outra questão: de que precisamos cometer “loucuras” para romper com a chatice da vida. Primeiro, eu não acho que a vida seja chata. Acho que quando conseguimos saboreá-la com moderação e parcimônia, ela pode ser muito gostosa, mas obviamente há também momentos amargos, pois, nada é sempre só bom ou ruim. O pra sempre, sempre acaba, como diria Cassia Eller.

Mas, por outro lado, há realmente pessoas que passam pela vida anestesiadas (e poderia ser o caso deste jovem que talvez estivesse de casamento marcado, mas se esqueceu de perguntar se queria realmente aquilo com aquela pessoa). Por este aspecto, acho que não é preciso subir de um trem e gritar lá de cima para que a vida volte a correr nas veias. Embora, muitas pessoas costumem se dar conta de que estão anestesiadas somente depois de um grande choque: perda de algum amor, doença, etc. Mas não precisa ser assim.

Sugiro uma medida simples, mas difícil de ser feita: se fazer perguntas pode ser um bom começo para averiguar qual o seu nível de anestesia sobre a vida.

Mas, o que ocorre é que muitas vezes já estamos tão embolados em nossas próprias dúvidas e pensamentos enganosos sobre nós e sobre os outros que precisamos da ajuda de alguém de fora pra fazer isso e aí pode ser uma boa pedida para você visitar o divã de um analista.

 

4 comentários em “Casamento é sinônimo de infelicidade?”

  1. Arrasou na reflexão! E hoje parece-me que a “moda” é viver na modernidade líquida, e a consequência é desorganização emocional/mental.

  2. Arrasou na reflexão! E hoje parece-me que a "moda" é viver na modernidade líquida, e a consequência é desorganização emocional/mental.

  3. Ótimo texto! Eu diria que, além de nos sondarmos sobre nossos desejos, necessidades enfim, para graduarmos o nível de anestesia sobre a vida, é preciso fazermos as perguntas certas… E, para isso, por vezes, são necessárias algumas "cabeçadas", a maturidade advinda da experiência. Parabéns! Um abraço.

    1. Olá Luciana. Que bom que gostou das minhas reflexões!

      Interessante você falar sobre a necessidade de fazermos as perguntas certas para nos conhecermos melhor. E como nós todos temos “pontos cegos”, dificilmente conseguimos fazer as “perguntas certas” para nós mesmos. É por isso que o próprio Freud desistiu da auto-análise. E é por isso também que precisamos tanto de um olhar externo (frequentemente dado por nossoas analistas) para guiar o nosso olhar para as “perguntas certas” sobre nós.

      A outra questão que você traz é com relação às cabeçadas, necessárias para a aprendermos com as experiências. Nisso, eu concordo e discordo de você. Muitas pessoas, apesar de viverem dando “cabeçadas” por aí, não conseguem aprender com as próprias experiências.

      Então, eu diria que uma condição crucial para aprendermos com as nossas experiências é o fato de podermos sonhá-las e elaborá-las. É por isso que é um grande erro as pessoas dizerem que quanto mais velhos, mais experientes ficamos. Experiência não tem nada (ou quase nada) a ver com a idade cronológica, mas com a forma com que aproveitamos ou não para refletirmos sobre o que ocorre conosco.

      Abraços para você e obrigada pelo comentário

      Ana Laura Martinez
      Psicóloga clínica / Professora Doutora

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.