Comentários sobre o filme A Filha Perdida

Filme A Filha PerdidaNuma das primeiras cenas do filme, a luz do farol que ilumina o apartamento remete à iluminação de verdades que se preferiria manter no escuro, por seu caráter demasiado perturbador. 

O primeiro e mais perturbador aspecto iluminado é que filhos dão menos satisfação aos pais do que se costuma admitir, sendo a maternidade / paternidade  mais um ato de doação que de prazer. Embora “dar prazer e “alegrar” sejam papeis frequentes atribuído às crianças em nossa cultura.      

Nesse aspecto, Leda e Nina representam mulheres que não conseguiram corresponder ao que se espera delas, seja por se sentirem demandadas além do suportável ou por estarem terrivelmente sós para exercerem esta difícil função, já que nem Leda nem Nina contavam com os parceiros.  

Satisfação com a maternidade

Isso significa dizer que o grau de satisfação com a maternidade / paternidade depende da conjunção benéfica de fatores psíquicos e sociais, tornando-as uma responsabilidade coletiva, além de individual. Pois, é cruel deixar uma pessoa sozinha lidar com os duros encargos de uma criança.  

As dificuldades de Leda com a maternidade levam-na à abandonar as filhas  por três anos, enquanto Nina sente-se deprimida e exausta com as demandas da pequena filha Elena e pelas intrusões constantes de sua família inadequada. 

Ainda, no caso de Leda, deixar as filhas aos cuidados do companheiro até então ausente foi uma forma de forçá-lo a se envolver com elas, levando-o a experimentar na marra o que é cuidar 24 horas por dia dos filhos.

Natureza tirânica de alguns filhos

Outro aspecto perturbador iluminado no filme é a natureza tirânica e pulsional das crianças contraposta ao lugar imaginário adocicado que elas ocupam na cultura.  

Bianca, filha mais velha de Leda, comporta-se de modo arrogante e por vezes cruel. Exige da mãe, sem perceber ser ela a filha.

Em uma cena dramática, Leda está exausta deitada no chão e Bianca penteia com agressividade seus cabelos, claramente tentando machucá-la. Em outra, Leda dá a ela sua boneca Mina para cuidar, à qual Bianca maldosamente estraga. 

Vendo com realismo, impulsos de ódio, inveja e competição tornam a vida de uma criança um verdadeiro tormento, repleto de angústias terrificantes, algo que Leda em sua visão ultra-realista consegue enxergar.

Erotismo e maternidade

Ilumina-se também no filme o conflito entre o erotismo e a maternidade / paternidade, como na cena em que Leda tenta se masturbar e é interrompida bruscamente pelas filhas, a ponto de muitos casais deixarem de ter vida sexual depois de tê-los, por culpa ou exaustão. 

Conflito que parece ser quase irresolvível se não se é uma família aristocrática ou burguesa do século XIX, e se tem que criar filhos sem o auxílio de ninguém.

Um terceiro elemento, este estético, iluminado no filme é a relação entre uma vida interiormente rica e a capacidade de se suportar a dor, como se vê em Leda e Lyle. 

 Na refeição que Lyle prepara à Leda observa-se duas pessoas vividas e maduras, que, a despeito da dureza da vida, foram capazes de se manterem alegres, joviais, bem humoradas e  pulsantes, como quando dançam alegremente no baile. Ela com um exuberante vestido vermelho; ele com a ginga e a graça de um menino. Competências psíquicas que independem da idade. 

Preconceito com a mulher que envelhece “sozinha”

De outro lado, vê-se a crueldade e o preconceito com que a mulher que envelhece “sozinha” é tratada, como na cena dos delinquentes no cinema, e no modo como Callie, cunhada de Nina, trata Leda na praia, não se conformando por ela estar sem as filhas.

Neste aspecto, Leda é o avesso do estereótipo da mulher velha, ressentida, amarga e infeliz. 

Ela viaja sozinha, canta em voz alta, dança, estabelece vínculos, encanta-se com as belezas naturais do lugar e gosta da sua própria companhia, embora sinta-se sozinha às vezes. Além disso, tem seus livros e interesses intelectuais próprios, companhias extraordinárias para quem tem vida interior. 

Finalizando, Leda é a antípoda de três imperativos categóricos totalizantes que recaíram fortemente sobre a mulher a partir da modernidade: a da mulher, que “ama” ser mãe; a da criança, como única fonte de gozo para ela; a da velha, ressequida e amarga.

*O filme é uma adaptação livre da obra “La Figlia Oscura” (2012), da escritora que utiliza o pseudônimo Elena Ferrante.

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