Medo e coragem em tempos de coronavírus: reflexões à luz de uma experiência pessoal

Quando padeci de um quadro fisicamente muito doloroso há alguns meses não poderia imaginar que estava, sem saber, acumulando experiência para atravessar a onda do coronavírus.

Na ocasião, apesar de não ter corrido sério risco de vida, convivi por alguns meses com uma dor que me incapacitou de fazer coisas simples como caminhar ou sentar.

E, como tive muito tempo para pensar, refleti bastante sobre o que penso ser um jeito digno de enfrentarmos uma doença ou uma situação difícil como a de agora.

São estas reflexões muito pessoais que me proponho a compartilhar aqui.

Quando perdemos a saúde repentinamente nos damos conta de um jeito radical e desesperador que a vida pode se tornar (quase) insuportável se ficamos impedidos de fazer coisas que, quando estamos sãos, são bastante banais e corriqueiras.

Assim a doença física, sobretudo quando se prolonga, promove um radical redimensionamento das coisas para nós. Aquilo que é banal para o são, para o doente se torna uma dádiva. Aquilo que não tem o menor valor para o saudável, para o doente se torna alvo de inveja e cobiça.

Isso faz frequentemente com que a doença física seja vista por muitos como uma espécie de “caminho de regeneração do homem” ou, no pensamento animista, como uma punição por um prazer proibido consumado no inconsciente.

Esta visão, inclusive, tem sido muito compartilhada acerca do coronavírus. A de que após ele a humanidade passará por um profundo processo de regeneração onde finalmente viveremos em maior harmonia com a natureza.

Ou então, numa visão mais medieva, de que a peste do coronavírus foi lançada sobre nós (por Deus?) como uma espécie de sinal de alerta para reavaliarmos o mau caminho que temos tomado como espécie.

Uma terceira linha de visão ainda, de cunho mais biologicista, argumenta que todas as espécies animais, incluindo a nossa, possuem predadores e que a mortandade dos indivíduos em massa serviria ao propósito de controle populacional.

Ressalta-se que o mesmo argumento foi encontrado muitas vezes no passado para justificar as grandes guerras mundiais: faz-se guerra para evitar a superpopulação mundial.

O curioso é pensar que a abordagem de um problema real – a superpopulação humana sobre a terra – possa encontrar solução no estranho caminho de justificar a morte de milhares de nós (seja por guerras ou por pestes) e não no que seria o mais óbvio e sensato como a orientação das pessoas sobre a não necessidade de se ter mais filhos e a descriminalização do aborto, por exemplo.

De qualquer forma, voltando ao ponto que nos interessa aqui, fato é que, do ponto de vista psicobiológico, nossos corpos e psiquismos são regidos pela busca do prazer e fuga natural da dor, algo para o qual Nietzsche já havia alertado bem antes de Freud.

Nesta perspectiva, ser saudável não é querer abolir a doença já que não temos nenhum controle individual sobre ela. Ser saudável é querer, uma vez doente, melhorar o mais rápido possível para voltarmos a usufruir da vida.

E para isso, diz Nietzsche, é preciso coragem: a coragem de dizer sim à vida e aos pensamentos alegres não à morte e aos pensamentos sombrios que, sabemos, exercem um tremendo fascínio sobre nós.

Acontece também que viver é extremamente trabalhoso e conflitivo. Manter-se corajoso e com o espírito elevado frente às impermanências naturais da vida, muito mais desafiador do que ser negativista e queixoso.

E o que pude aprender com a minha doença, e que vejo se confirmar agora com o coronavírus, é que os liames entre a covardia e a coragem são muito tênues e que vários são os labirintos em que podemos nos perder nesta busca.

No meu caso, a luta entre a covardia e a coragem se deu quando tentei me iludir de que meu problema poderia ser resolvido sem cirurgia, ilusão que a realidade acabou por não comprovar.

Ora, quando ficamos com medo de algo é natural que tentemos nos iludir. Mas quando insistimos em preferir a ilusão à verdade, para evitarmos o medo, aí é que nos tornamos covardes.

Decidida a operar, na ante sala do centro cirúrgico, enquanto aguardava a minha vez, pude pensar que sentir medo não nos dá o direito de nos tornarmos tiranos ou revoltados.

A depender de como enfrentamos as adversidades da vida, se com humildade ou com revolta, nos tornamos mais sábios ou mais patéticos e miseráveis.

Um senhor que seria operado antes de mim comportava-se tristemente como uma criança mimada, reclamava às enfermeiras o tempo todo que estava com fome; xingava porque a cirurgia anterior estava demorando e dizia que ia processar o hospital.

Era evidente que estava revoltado por estar doente e, incapaz de conter seus próprios sentimentos de medo e pânico, derramava-os em forma de raiva e de inconformismo sobre os outros. Em suma, enfrentava seu medo da maneira menos nobre e altiva possível: se acovardando e dando trabalho aos outros.

Fiquei triste porque pensei que ele estava perdendo uma oportunidade valiosa de aprender algo sobre a vida e sobre ele mesmo.

Por exemplo, que nós temos pouquíssimo controle sobre as doenças que nos acometem; e que momentos difíceis como este são ótimos para desenvolvermos a nossa capacidade de humildade e de paciência com aquilo que não podemos alterar.

É isso que chamo procurar enfrentar uma situação difícil com alguma nobreza e coragem. Por isso achei que estas reflexões caberiam bem no contexto do coronavírus.

O coronavírus trouxe, em nível mundial, a iminência de um risco de dizimação em massa de vidas humanas, seja pelo vírus, seja pela crise econômica mundial provocada por ele. Por isso é natural que tenhamos medo e até pavor de tudo o que estamos vivendo.

De outro lado, esta pode ser uma ótima oportunidade para cada um de nós conhecermos mais profundamente os nossos medos e de aprendermos a contê-los sem exterioriza-los, como não conseguiu fazer o senhor do hospital.

Também pode ser uma oportunidade valiosa de exercitarmos o espírito nietzschiano em nós, a saber, a capacidade de atravessarmos uma situação difícil como esta sem ficarmos nos lamentando nem tendo pena de nós mesmos em demasia; a capacidade de contermos os nossos pensamentos sombrios e a nossa frustração sem precisarmos destilar nossos ódios sobre os outros nem achar bodes expiatórios para as nossas desgraças.

Desgraças na vida acontecem aos montes. Já existiam antes e vão continuar a existir depois do coronavírus. E coisas boas também. Por isso Guimarães Rosa dizia ter mais medo de nascimentos do que de mortes. Porque viver é muito, muito mais arriscado e difícil que morrer.

Assim, penso que permanecermos vivos e lutarmos pelo direito que nos cabe à alegria e ao prazer pode ser tão ou mais difícil e exigente em termos de disciplina mental do que pegar coronavírus ou qualquer outra doença e, quem sabe, morrer delas. É isso o que a clínica psicanalítica sempre me mostra.

Porque na doença podemos nos ver justificados a nos abandonar de nós mesmos, o que frequentemente ocorre; e, na morte, tudo finalmente acaba e não há mais nada a fazer.

Então que, nesta quarentena, possamos sim lutar pela preservação das vidas humanas fazendo tudo o que está ao nosso alcance fazer.

Mas que possamos também não nos esquecer de que manter um espírito de decoro e de nobreza frente o sofrimento pode ser o ato mais inteligente que podemos ter por ora.

E que, se após o coronavírus sobrarem poucos de nós e se estes poucos vierem a ser visitados por alguma espécie alienígena, que a lembrança que possamos deixar aos que não puderam nos conhecer seja a de que somos seres excepcionais.

Porque fazemos sinfonias e sonatas, obras de arte e construções maravilhosas, descobrimos vacinas e salvamos vidas, somos generosos e ajudamos gente, adoramos samba e carnaval, somos inventivos e esperançosos sobre o futuro, fazemos muros, mas também pontes.

Em suma, se viemos do macaco, o deixamos para trás há muito tempo!

Um comentário em “Medo e coragem em tempos de coronavírus: reflexões à luz de uma experiência pessoal”

  1. Lindo texto Ana! Que importante, ainda que seja mais difícil, nos convocar-mos a fazer esse trabalho que é de poder ser paciente, perseverante, grato, corajoso e criativo! Amei seu texto, uma inspiração. Fiquei preocupada com você, está bem agora de saúde? (mandarei inbox). Beijos Déia.

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