Pudor e hipocrisia no casamento conjugal moderno: reflexões à luz do pensamento de Simone de Beauvoir.

Uma mulher insatisfeita sexualmente com seu marido que ligasse a rádio na década de 80 e ouvisse a parada pop de sucesso “Amante profissional” (da banda Herva Doce) ver-se-ia seriamente tentada a contratar o serviço.

Na irreverente música o tal amante profissional é descrito como um homem alto, moreno, bonito, carinhoso e sensual, capaz de realizar a fantasia da mulher insatisfeita sexualmente por meio de um relacionamento íntimo e discreto e sem qualquer compromisso emocional.

A cena faz apelo (e sucesso) porque joga com a insatisfação da mulher com aquilo que ela tinha em casa, ou seja, o marido. O amante profissional, alto, moreno, bonito, carinhoso e sensual, é quase sempre o contrário do que era o marido da realidade: por vezes baixo, calvo, já com o abdômen avantajado e largado por anos da prática da cerveja e do exercício tipo controle remoto, estúpido e grosseiro e nem um pouco romântico com o avançar dos anos de casamento, se é que fora um dia.

Ora, ninguém em sã consciência seria capaz de recriminar os devaneios eróticos da pobre mulher, tendo em vista a realidade cinzenta e nem um pouco erótica que se lhe apresentava no santo lar. O psicanalista Wilhelm Stekel que ouviu a insatisfação de muitas mulheres casadas e publicou em 1953 o livro “A mulher fria” observou o óbvio: que muitas só conseguiam o orgasmo conjugal mantendo secretamente fantasias eróticas com seus médicos ou professores de ginástica. Freud, por sua vez, demonstrou não poucas vezes como as fantasias são necessárias e fundamentais para que possamos suportar as cores por vezes sem graça e tétricas da realidade. Também demonstrou que quando o sujeito não se julga forte o suficiente para mudar sua realidade por outra mais satisfatória, infla o seu universo fantasmático e refugia-se nele, alienando-se da realidade frustrante. O problema é que não se faz isso sem o preço alto de uma clivagem no ego, que gera como uma de suas consequências funestas o pudor e a hipocrisia.

Foi com o mesmo espírito pudorento e hipócrita que muitos psicanalistas desenvolvimentistas atacaram o problema da insatisfação feminina no casamento relançando-o de volta ao próprio sujeito: se ela não está satisfeita, é porque não se satisfaz com nada. Ao invés de problematizarem, com a elegância que a psicanálise permite problematizar, a própria realidade, neste caso, os moldes do casamento conjugal moderno – que não teria como gerar outra coisa senão infelicidade e insatisfação, pudor e hipocrisia (para ambos os parceiros) – culpabilizaram o sujeito alegando sua incapacidade adaptativa e outras bobagens deste tipo.

A música da década de 80 é interessante porque nos faz pensar porque uma mulher precisaria de um serviço de amante profissional? Ora, isso se deve ao próprio pudor com que a vida erótica feminina se revestiu ao longo da história. Para uma mulher insatisfeita, admitir suas necessidades sexuais imperiosas sempre foi mais difícil do que para o homem. Além do mais, não se trata de boa prática social – ou pelo menos não se tratava – uma mulher sair à noite no encalço de um amante com quem pudesse ter um encontro sexual casual. Daí a visionária percepção mercadológica de que, entre nós, haveria uma grande procura por tal serviço.

Isso nos leva a pensar que o preço social que homens e mulheres, na modernidade, tiveram que pagar para terem livre intercurso sexual foi extremamente caro e oneroso. Para poder ter relações sexuais não clandestinas, o preço a ser pago deveria ser a submissão à instituição do casamento, com suas duras e nada sensuais infindáveis exigências mundanas. Em última instância, a música joga com humor com este desejo feminino, mas também masculino universal: poder usufruir do intercurso sexual sem precisar pagar o duro preço dos compromissos sociais e morais que a instituição moderna do casamento impôs a cada um de nós.

No caso da mulher, o preço a ser pago foi mais alto e mais oneroso do que para o homem, com quem sempre houve maior indulgência com relação às escapadelas amantisticas. Para a mulher, não só a maior rigidez da moral sexual lhe impedia o acesso ao prazer sexual livre, mas, sobretudo as exigências impostas pela maternidade também significaram a ela um importante grilhão. A uma mulher mãe era ainda mais escandoloso o reconhecimento do seu desejo sexual, do que a uma mulher sem filhos, já considerada uma pária por excelência, e, portanto, muito próxima da degradação social. Talvez o ódio que muitos casais que não desejam filhos ainda despertem nas famílias tradicionais se deva ao fato de que eles imaginam que o casal sem filhos goza loucamente sem nenhum tipo de impedimento mundano que lhe atrapalhe o prazer o que, em parte, não deixa de ter uma dose de verdade, tendo em vista que os filhos representam um grande ônus, sobretudo para o livre exercício da liberdade sexual feminina.

Contribuições da filósofa Simone de Beauvoir:

Simone de Beauvoir, filósofa francesa, debruçou-se profundamente sobre este problema e, a meu ver, trouxe contribuições valiosas. Levou tão a sério sua perspectiva de que a instituição tradicional do casamento impunha pesos insuportáveis sobre o dorso do pobre casal que radicalizou sua perspectiva e nunca aceitou coabitar com seu grande amor e parceiro intelectual, o filósofo Jean Paul Sartre. Outra grande radicalidade de sua parte foi não exercitar a imposição da monogamia.

Ou seja, para ela, erotismo ou prazer sexual livre não combinavam com as regras restritivas que a instituição do casamento impunha aos parceiros no que se refere à suas liberdades individuais. Nesta perspectiva, consentir com o sacrifício de tais liberdades em prol da manutenção da instituição do casamento seria, para ela, caminho certo para a morte do erotismo. Sobre tal antítese entre desejo sexual e casamento, ela diz:

O erotismo é um movimento para o Outro, ou seja, para a radicalidade da liberdade. Mas no seio do casal, os cônjuges correm o risco de se tornarem os mesmos. Nenhuma troca é mais possível, nenhum dom, nenhuma conquista. Por isso se continuam amantes na cama, fazem-no com vergonha; sentem que o ato sexual não é mais que uma experiência em que cada qual se ultrapassa em direção ao Outro, e sim uma espécie de exercício pudorento, uma masturbação em comum.

Ou seja, na medida em que o casamento moderno transformou o exercício da liberdade sexual em algo pecaminoso, proibido, contrário aos bons costumes e a ordem, levou junto consigo, para o mesmo limbo da negatividade, o erotismo, que para se realizar pressupõe a existência de duas liberdades igualmente preservadas. Nesse sentido, a rebelião de Simone contra a ordem estabelecida do casamento e da monogamia, escondia uma revolta ainda mais profunda da pensadora: a revolta contra o direito à liberdade de escolher como viver e amar. Deriva desta percepção arguta da filosofa acerca da íntima relação existente entre liberdade e erotismo (ou amor à vida) a ideia de que nem a psicanálise, nem as artes, nem o amor podem vicejar em sociedades tirânicas, autoritárias e ditatoriais, em que as liberdades individuais não estejam preservadas.

Voltando ao casamento, como nenhum ser humano razoavelmente consciente de si pode perdoar ser constrangido em seu direito à liberdade e ao prazer, homens e mulheres modernas canalizaram diferentemente seus ressentimentos para com o mundo: os primeiros procuraram suas liberdades no leito, sempre mais interessante, de suas amantes e prostitutas; as segundas ressentiram-se, amargaram-se e vingaram-se da privação sexual infligida a si pelo mundo por meio de suas doenças neuróticas e pela maternidade, reinado do qual depende inextrincavelmente a perpetuação da raça humana sobre a terra, o que não significa pouco poder dado pela natureza a nós.

Desde a década de 50, quando Simone sistematizou suas reflexões sobre o casamento, muita água rolou pelo rio da história e, ao que tudo indica as novas gerações ainda buscam fazer um balanço sobre as vantagens e desvantagens de ainda mantermos de pé a instituição matrimonial. Dito de outro modo, nós, os contemporâneos, ainda tateamos no escuro e buscamos equacionar esta delicada relação entre liberdade individual e compromisso social, ora pendendo para um lado, ora para outro. Filhos e netos da geração tão bem delineada por Simone, aprendemos a duras penas vendo as experiências conjugais infelizes de nossos pais que o preço de sair bem na foto de família pode ter sido custoso demais para os nossos antepassados e os benefícios deste sacrifício, ínfimos demais. Afinal, para a praga do social, que só quer uniformidade e conformismo, não importa o quanto você esteja feliz ou infeliz, só importa que você siga as regras do jogo como bois em manada.

Para aqueles que, como eu, buscam a maneira de Simone serem fieis a si mesmos, e não fazerem concessões com a imbecilidade reinante, o caminho é duro e por vezes solitário. Mas o sabor inigualável da liberdade e de ser fiel às próprias convicções é impagável e compensa qualquer dissabor e má compreensão.

Referências

Stekel, Wilhelm. (1953). A mulher fria: estudo minucioso da frigidez feminina.  Editora Civilização Brasileira: Rio de Janeiro.

Beauvoir, Simone de. (2016). O segundo sexo: fatos e mitos. Volume 1. Nova Fronteira: Rio de Janeiro. (Publicado originalmente em 1949).

Beauvoir, Simone de. (2016). O segundo sexo: a experiência vivida. Volume 2. Nova Fronteira: Rio de Janeiro. (Publicado originalmente em 1949).

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