Preconceito e estigma contra mulheres sem filhos

O número de mulheres que escolhe não procriar tem aumentado nas últimas décadas. Dizem delas que são egoístas, vazias e incompletas e, jocosamente, vislumbram-nas na velhice como a “louca dos gatos”, que é uma forma de dizer que amam mais os bichos que os humanos.

Tais reações preconceituosas levam a refletir porque, afinal, a escolha pela não maternidade continua a ser tão incomodativa para muitos de nós, sendo disso que procuraremos tratar.

A procriação

Procriar ou não é uma escolha individual com significados diferentes para cada um. Ela pode ser feita com maturidade, mas também na mais absoluta inconsciência.

Mulheres procriam incidentalmente ou pressionadas por expectativas sociais, da mesma forma que em ficam psiquicamente estéreis por conflitos inconscientes não elaborados. Aqui a procriação ou sua recusa são vividas na total inconsciência, não se tratando, portanto, de escolha.

Muito diferente é a decisão refletida e amadurecida de procriar ou não, onde o sujeito assume plenamente o seu desejo e as consequências, sabidas e não sabidas, dele.

Responsabilizar-se por decisão de tal ordem é sinal de grande maturidade psicológica.

Alguns aspectos que tornam particularmente dramático o fato da procriação são: a incompatibilidade entre o tempo biológico e o tempo psicológico em que a mulher se sente preparada para ser mãe bem como o caráter irrevogável da decisão, além das altas expectativas internalizadas sobre o papel materno.

Há uma pequena consciência de tal drama nos e nas que dizem que não se deve pensar muito sobre ter filhos, sob o risco de não tê-los nunca.

Isso pode ser significar tanto um modo disfarçado de dizer que não se quer filhos, mas também receio em pensar mais profundamente sobre o assunto.

Em psicanálise, entende-se que tornar uma criança um filho é um processo complexo que envolve aceitação e reconhecimento global de sua pessoa por parte dos pais, o que inclui seu sexo, suas possíveis deficiências e sua personalidade própria, processo a ser construído na filiação biológica e na adotiva.

Isso significa dizer que filhos biológicos e não biológicos precisam ser reconhecidos em sua alteridade na mente dos pais, o que necessita de pais saudáveis psicologicamente.

A escolha pela não procriação

Decidir não procriar é uma escolha difícil, pois o ato de procriar é um imperativo categórico solidamente internalizado no humano.

Assim, mulheres que decidem não ter filhos com frequência se sentem em débito com a sociedade por descumprirem o que se espera delas, o que não ocorre com as que querem mas não conseguem engravidar.

Inconscientemente, mulheres que optam por não procriar são vistas como criminosas contra a natureza, pois cabe a ela gerar e dar a vida. Decorre daí que não procriar é renegar vida a alguém.

Não procriar por escolha evidencia outro ponto delicado: mostra que, no humano, procriar transcende a dimensão puramente instintual.

Instinto de procriação

Instintos são padrões comportamentais de espécie pré-programados para operar em ciclos periódicos.

Na fêmea humana, como em outras, o instinto procriador condiciona à busca pela cópula com fins reprodutivos e à dedicação ao cuidado da prole.

Daí ser o instinto procriador um artefato da natureza para que a espécie se perpetue e que, na humana, regula-se por sua fisiologia hormonal.

Tal instinto, dito materno, é reforçado em nossa cultura e ligado à figura da mulher, embora em culturas aborígenes, por exemplo, o cuidado das crianças pequenas seja função de homens e não de mulheres (Mead, 1946).

No humano, é o  trabalho do instinto que torna o bebê um objeto eroticamente tão prazeroso para sua mãe e para muitas mulheres, embora não para todas.

Já o fenômeno de mulheres, inférteis ou não, que tratam animais como bebês mostra como é difícil para uma mulher renunciar a tal instinto, sobretudo se este é forte nela.

Mulheres que não desejam procriar

Mulheres que não desejam procriar ou não possuem um forte instinto procriador ou o têm, mas optam por sublimá-lo até onde se sentirem capazes, sopesando racionalmente os prós e contras da maternidade. Donde indaga-se até que ponto a sublimação completa do instinto reprodutor é possível na humana.

Nestes casos, pode-se justificar o não desejo por filhos racionalizando-se motivos lúcidos tais como: a superpopulação mundial, a decadência ética da humanidade ou o alto custo financeiro de uma criança.

O que faz pensar sobre o porquê uma mulher precisar de justificativas “racionais” para explicar a si mesma o fato de não querer ser mãe.

Mudanças de comportamento em curso

Mudanças sociais significativas raiam no horizonte próximo, com analisandas jovens tendo sido capazes de sustentar que não serão mães porque não têm vontade.

Através delas, elabora-se o peso da tradição para melhor superá-la, tendo como um de seus resultados visíveis a ideia de haver muitas formas de se contribuir positivamente para o mundo, sendo a procriação somente uma delas.

O sentimento de habitar num mundo cada vez mais complexo e rápido em transformações culminando numa desconcertante incerteza sobre o futuro traz a estas novas gerações a urgência por um senso de corresponsabilidade, e que se traduz num olhar menos romantizado sobre o assunto.

Isso explica o senso de urgência destes jovens em realizarem escolhas que façam mais sentido para eles e para o mundo que habitam, denunciando o fracasso nisso, das gerações que os antecederam.

Daí considerarem egoístas as pessoas que têm filhos para serem aceitas socialmente ou para compensarem seus próprios fracassos pessoais; ou ainda, para não ficarem sós no futuro.

Tal reflexão aponta, curiosamente, para o fato de que o desejo de procriar não está isento de motivos egoístas, como já havia apontado Freud em seu texto sobre o narcisismo (1914).

Esperamos que o aumento do número de pessoas que optam por não procriar possa significar um amadurecimento da sociedade acerca do sentido ético da procriação.

2 comentários em “Preconceito e estigma contra mulheres sem filhos”

  1. Você fala sobre traços de maturidade. Já ouvi dizer que existem diversos deles. Pode me citar alguns?
    Ótimo post e interessantíssima reflexão. Acho que esse ”movimento social” positivo, uma vez que teremos pais, pelo menos na teoria, cada vez mais engajados com a criação de filhos no que diverge da garantia básica de sobrevivência.

    1. Lucas, traços de maturidade são competências psíquicas que desenvolvemos ao longo da vida e que nos tornam aptos a vivermos como adultos (e não como pseudo-adultos). Dentre estes traços que atestam que uma pessoa é adulta de verdade eu elencaria: assumir o responsabilidade pelos próprios erros e acertos, não ficar culpando os outros pelo que nos acontece, ser capaz de tolerar as frustrações, aceitar os riscos inerentes às escolhas que fazemos e, principalmente, ser capaz de lidar com coisas complexas no nível do pensamento e da ação. Espero ter respondido sua pergunta. Abraços,

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