Sete andarilhos no coração profundo da Canastra

Já disse em outro texto o quanto caminhar prepara à contemplação estética da vida. 

Desta vez, percorri quarenta quilômetros, rumo ao coração profundo da Canastra, acompanhada de um animado grupo de seis andarilhos, numa travessia de dois dias que partiu da Serra Preta, passando pelo Vale da Gurita até o Chapadão da Babilônia. 

Minha enorme resistência ao desapego civilizatório sentiu-se logo na primeira noite, e mesmo antes, com sonhos aterrorizantes de cobras e escorpiões entrando na barraca. 

O medo de acampar pela primeira vez e o pudor de defecar “em público” foram cedendo espaço ao maravilhamento quase dolorido que o recair espesso da noite densa provocaram no céu. 

Sem luz alguma, exceto a das lanternas de nossas cabeças, que, percebi, usávamos timidamente como para não ferir o sublime, constelações inteiras puderam ser vistas à olho nú, o que nos rendeu um estado de embasbacamento completo, além de um torcicolo daqueles. 

O que percebi sobre isso é que, rompida a primeira resistência à imersão completa na natureza, começa-se a se viver um estado de integração com ela, onde deixa de ser relevante tomar banho na água fria, ter que defecar no mato e ser picado por carrapatos. 

Em suma, na natureza somos todos absolutamente iguais: fedidos, picados e com intestinos. 

No meu caso e no do meu marido, um dos efeitos “detox” desta imersão absoluta na natureza foi um desarranjo intestinal/estomacal, que associamos ao efeito purificador da natureza em nós. Sem contar também o efeito da completa exaustão física sobre o organismo.

No último dia da viagem, estava tão perigosamente identificada à natureza que não percebi o risco de hipotermia que corri ficando muito tempo na água gelada. 

Outra experiência sublime foi testemunhar o nascer do Sol. Vendo o céu se pintar de tons alaranjados nos primeiros raios da aurora, dei-me conta do quanto a luz solar enseja esperança e obstinada vontade de viver. Daí uma pessoa que não se alegra a cada dia que “nasce” estar seriamente doente. 

No último dia da travessia, em que acampamos no alto do Chapadão, acordamos às cinco horas para ver o raiar do Sol e eu quase podia tocar o sentimento de reverência que aquela beleza nos despertava. Foi algo muito bonito de se ver: todos em silêncio e em completo estado de oração. 

Infelizmente, era o fim do percurso. Subimos em nossos carros e os nossos guias, muito perceptivos, colocaram para ouvirmos músicas bonitas e o conto A Terceira Margem do Rio, do Guimarães Rosa. 

Neste momento, à medida que o carro avançava e aquela paisagem insólita, primordial e hiperbólica de chapadões e campos penetravam nossos olhos, o desejo era o de agarrá-las para sempre na memória, pois a despedida já se anunciava. 

Neste momento, enquanto eu derramava algumas lágrimas, tomada de muita emoção, um dos viajantes disse que em outra vida ele deve ter sido um andarilho, o que eu achei muito bonito e oportuno para a ocasião. 

O impacto estético das paisagens

Durante as caminhadas do primeiro e segundo dia, o impacto estético foi ir percebendo a transição de uma paisagem à outra, sendo a Serra Preta uma região que remetia mais à sensações de rudeza e de aridez e o Vale da Gurita, à sensações de aconchego e vastidão, por suas formações geológicas arredondadas e de grande apelo cênico. 

Já a travessia do Chapadão da Babilônia pelo alto, foi particularmente tocante para mim. 

Vendo aqueles grandes paredões rochosos intercalados por vastos campos com vegetação típica do cerrado a perder de vista, experimentei algo que Thomas Mann buscou descrever em A Montanha Mágica, a saber, a incômoda percepção da radical indiferença da natureza quanto a nós.

O que significa que nós precisamos dela, mas ela absolutamente não precisa de nós.

Fui informada depois por um dos viajantes que, neste trecho do percurso, ele foi tomado por um angustioso sentimento de despersonalização em que ele ficava se perguntando: Que dia é hoje? Que dia é hoje? Mecanismo que pode ser interpretado como defesa básica contra a angústia do assombro, despertada, neste caso, pela paisagem. 

Hipotetizo que algo deste tipo deve ter sido experimentado pelos homens que foram à Lua. 

Finalizando, ir e voltar de uma experiência desta é um pouco mais fácil quando se gosta da vida que se tem, o que é o meu caso, onde a saudade de casa e o retorno às coisas amadas funcionam como bálsamos curativos às intensas experiências vividas. Sim, pois a beleza pode ser tão desestruturante ou até mais que a feiura. 

Com isso, volta-se às misérias cotidianas da vida um pouco mais energizado, avisado de que o que importa mesmo é se chegar ao “tutano da vida”, como me explicou um paciente. 

Como cada qual fará isso, é a arte de cada um.

Para acessar o álbum completo da expedição, clique aqui. 

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