Sofrimento e mal-estar na vida dos homens

 

Se de um lado a psicanálise de Freud viabilizou a expressão do mal-estar do sujeito com seu sexo, de outro não escapou de reproduzir, em forma de teoria, o sexismo vigente (Dio Bleichmar, 1988).

A saber, o preconceito baseado em estereótipos de gênero, do qual homens e mulheres padecem.

Ainda assim, muito pouco se fala dos impactos subjetivos do sexismo na vida dos homens comparado ao que se fala das mulheres. Injustiça que procuraremos reparar aqui.

Diante disso será nosso propósito demonstrar, por meio dos discursos produzidos por alguns homens em análise, bem como de observações pessoais da autora, o impacto negativo dos estereótipos de gênero na vida dos homens.

 A tirania da virilidade

Faz parte do estereótipo masculino a imagem do homem viril, ávido por sexo o tempo todo. Imagem que, por exemplo, obstaculiza uma compreensão mais realista da violência sexual contra meninos.

No Brasil, segundo dados publicados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos em maio de 2020, estima-se que somente 23,6% das crianças de 0 a 9 anos vítimas de abuso sexual sejam meninos e 7,8% entre 10 e 19 anos, sendo todo o restante, meninas.

A premissa de que meninos e homens gostam de sexo e, portanto, nunca são forçados a ele é tão arraigada que a violência sexual, no menino será banalizada e tratada como “iniciação”. O que pode explicar a subnotificação dos dados.

Assim um homem conta de sua “iniciação sexual” aos doze anos num prostíbulo, levado pelo tio paterno para tornar-se homem, de onde contraiu uma doença venérea e uma grave inibição sexual.

Outro relembra sua “iniciação” com porcos e vacas, estimulado pelos primos mais velhos.

Em garotos de classe média e alta, tal “iniciação” costuma dar-se com empregadas domésticas e babás, suas primeiras “sedutoras”, conforme demonstrou Corrêa (2007) em seu interessante artigo sobre o papel das babás na economia erótica de Freud e de alguns de seus pacientes homens.

Este último aspecto evidencia a fixação precoce do preconceito de classe na economia das escolhas eróticas masculinas, com sua divisão habitual entre a mulher: da mesma classe social, para desposar e da classe social inferior, para ter gozo sexual (Freud, 1910/1980).

Nesse sentido, é porque Capitú, no clássico Dom Casmurro, ascendeu na escala social pelo casamento que o burguês Bentinho nunca confiou plenamente nela. Sendo as mulheres (e também os homens) das classes populares frequentemente vistos como mais livres sexualmente e por vezes promíscuos pelas camadas cultas e abastadas.

Donde se pode considerar que as formas sexuais iniciáticas do homem moderno são saídas sintomáticas que visam burlar a hipocrisia com que o sexo é comumente tratado na modernidade, algo para o qual Freud já havia apontado (Freud, 1908/1980).

Tais saídas reforçam o estereótipo do homem viril. E promovem sintomatologias sociais que serão muito mais prevalentes nos homens que nas mulheres. A saber, clivagem da vida afetiva e sexual, donjuanismo e o vício em pornografia, por exemplo.

No primeiro aspecto encontra-se a habitual divisão já citada acima entre a mulher idealizada e a rebaixada. Sendo estes os dois aspectos cindidos da imago materna, quando da descoberta, pelo menino, que a mãe também é mulher. E, portanto, faz sexo.

Para evitar a clivagem, Freud sugere que o homem dessacralize a mãe e aceite conspurcá-la, sem culpas, em suas fantasias sexuais (Freud, 1910/1980). Saída que o livraria da hipocrisia sexual.

Outro aspecto desta clivagem é que a enorme pressão por manter a imagem do macho viril que captura sua presa, pode reforçar, no homem, a visão do sexo como uma luta por domínio e subjugação, na qual a afetividade significará para ele fraqueza.

O risco neste caso é o sexo desvincular-se de sua dimensão imaginário-erótica (Bataille, 1987), tornando-se mera função corpórea. Que, assim, só pode envergonhar e rebaixar aqueles que o praticam.

Este é o sentido decaído do erotismo que prevaleceu no pensamento moderno, conforme demonstrou Foucault (1977/1979), associado ao crime originário e ao castigo que dele decorreu, conforme se encontra formulado no pensamento judaico-cristão.

Sentido que contribuiu para a hipocrisia que persiste na forma como homens e mulheres, cada qual a seu modo, lidam com o sexo.

Zoação e vulgaridade

 A busca por domínio e subjugação é um valor prevalente no homem e costuma se estender nele para muito além do sexo. Envolve praticamente todas as suas relações com os outros, mas principalmente a relação entre ele e os outros os homens.

Assim cinco amigos, depois de jogarem futebol, reuniram-se para zoarem-se entre si e comentarem vulgaridades sexuais.

Pode-se compreender zoação entre os homens como uma guerra light onde a violência de uns contra os outros permanece velada.

Seu mecanismo consiste em desqualificar ou colocar em dúvida a masculinidade alheia para reassegurar-se da própria. Mecanismo que aponta para um senso de masculinidade frágil e pouco elaborado naquele que a pratica.

Vulgarizar o sexo é outro código pelo qual o homem (e atualmente a mulher) tende a se afirmar sua virilidade.

Ora, vulgarizar uma pessoa, situação ou tema é um modo de neutralizar a insegurança frente o desconhecido. Daí a vulgaridade pertencer ao domínio do senso comum onde as ideias carecem de elaboração e tendem à superficialidade.

O estereótipo de que homens tendem a ser superficiais pode explicar-se a partir daí. Já que o âmbito da subjetividade e da interioridade, necessários à elaboração do pensamento, vem sendo culturalmente associado muito mais ao universo feminino que ao masculino.

Investigamos até aqui a relação do homem com o sexo. Vejamos agora o quanto a manutenção de sua imagem pública pesa sobre ele.

 A imagem pública da virilidade

 Um homem traído pela esposa queixou-se que sua honra masculina havia sido ferida. Assim, incomodava-o na ocasião que as pessoas viessem a descobrir que ele era corno, sendo o adultério feminino a marca de sua desonra pública como homem.

De fato, ainda que haja menor tolerância social com o adultério da mulher, o motivo deve-se quase sempre ao temor deste vir a se tornar público (Fonseca, 2000).

Isso porque enquanto o adultério masculino publicizado reforça a imagem viril do homem, o adultério feminino a abala, conforme vemos no exemplo acima. O que está comprovado no fato de as piadas sobre “chifres” nunca recaírem sobre as mulheres, mas sempre sobre os homens.

Uma das origens do horror ao adultério feminino remonta ao fato de que a paternidade biológica nunca é completamente garantida para o homem. Algo problemático tendo em vista que historicamente a transmissão dos bens se deu pelo “sangue”, e ter um herdeiro bastardo significava, além de desonra pública, perda de bens e empobrecimento da linhagem familiar.

Assim, os leitores de Machado de Assis podem acompanhar as dúvidas atrozes de Bentinho sobre o adultério ou não de Capitú, de onde teria resultado o filho “bastardo” Ezequiel. Ambos enviados ao exterior para preservar a imagem do protagonista e “liquidar” de uma vez com o assunto.

Na clínica psicanalítica, homens, à semelhança de Bentinho, também expressam dúvida sobre as “ardilosas intenções femininas”, sobretudo se são surpreendidos com uma gravidez incidental por parte delas.

Nesse sentido, homens que foram surpreendidos com uma gravidez incidental desconfiaram da fidelidade de suas parceiras e de suas “intenções sórdidas de engravidarem a qualquer custo”. O que ocorreu não só com aqueles que engravidaram parceiras em sexo casual, mas também nos que tinham parcerias estáveis.

A levar-se em conta que tais gravidezes decorreram de relações sexuais desprotegidas, ou de falhas nos métodos contraceptivos, evidencia-se o fato cultural ainda presente na mentalidade do homem brasileiro de responsabilizar a mulher sozinha pela evitação da gestação. Como se crianças fossem “assunto de mulher”.

Outro aspecto é a prevalência ainda marcante no imaginário do homem como “macho alfa”, para quem cuidar do filho de outro pode ser impensável para muitos homens. Ainda mais quando se trata de filhos maiores.

Uma das explicações para isso é ser o filho de outro homem prova cabal da relação sexual de “sua” mulher com outro homem, situação insuportável na fantasmática masculina.

Conta Freud (Freud, 1913[1912]/1980) em sua mitologia sociológica que nos primórdios da humanidade um homem poderoso detinha todas as mulheres, e os outros homens sob o seu julgo.

Até que estes se reuniram e mataram-no, instituindo entre si o primeiro pacto civilizatório. A saber, o domínio de suas sexualidades e agressividades desenfreadas de uns contra os outros.

Daí ser a sombra “do outro homem da mulher”, para cada homem civilizado, o risco do retorno à barbárie e à submissão do Um sobre todos. E também instigadora de sua rivalidade sexual.

Assim, o “outro homem da mulher” é no inconsciente masculino todos os homens que ele teve imaginariamente que “vencer” para tornar aquela mulher “sua”. Cada mulher significando para ele a tentação de roubo e violência contra outro homem.

O mandamento popular que diz “mulher de amigo meu, para mim, é homem” versa precisamente sobre isso: frente a cada mulher “com dono”, o homem deve lutar contra a tentação de roubá-la do outro, para demonstrar seu poder e superioridade sexual sobre o rival.

Decorre daí não ser possível compreender a sexualidade masculina descolada do impulso de domínio e de agressividade contra os outros homens.

 O homem provedor

A imagem do homem provedor é crucial para compreender o ideal de masculinidade, em que o orgulho e poder comparecem como elementos centrais.

Assim, um homem tradicional rompeu com a noiva abastada por “não ter como sustentá-la” sozinho. Outro, sustentado financeiramente pelo pai da esposa, sentiu-se humilhado por isso.

Aqui parece haver diferença quando se trata de se ser sustentado por uma mulher, que pode ser a mãe ou a esposa, ou por outro homem, sendo o incômodo muito maior neste último caso.

Nesse aspecto, a necessária luta pela igualdade financeira entre os gêneros pode ter reforçado a indolência do homem em sua função de prover a família, sem tocar no aspecto mais profundo da questão. A saber, o uso do dinheiro como fonte de controle e de poder para o homem.

Assim, deixar outro prover sua casa é deixá-lo “dar as ordens em seu próprio reinado”, onde “manda quem paga as contas”. O que pode explicar a rejeição dos homens em dividir a função de prover (e de mandar), pelo menos no nível do discurso.

Nesse aspecto é bastante comum que homens, quando principais provedores, ameacem suas parceiras usando o dinheiro. Ou que, divorciados, deixem de prover seus filhos quando a ex-mulher encontra outro homem.  Exemplos que apontam para a brutal eficácia restritiva e punitiva do dinheiro.

Daí a liberdade feminina não poder prescindir de condições concretas de se sustentar por si mesma, como já havia salientado Virginia Woolf (Woolf, 1928).

Transformações culturais recentes deste estereótipo, em que homem e mulher geram receita e dividem contas, têm gerado outras tensões. Em parte porque o salário feminino ainda é tido como complemento.

E também porque este arroubo de igualdade e de reconhecimento financeiro não se expandiu ao trabalho doméstico.

Curiosamente, a ânsia feminista das últimas décadas por “dividir a conta” mais uma vez beneficiou os homens. Que agora encontram alguém para arcar com metade de tudo, enquanto elas trabalham em dobro: fora e dentro de casa. E na segunda, sem remuneração alguma.

Sai-se da era da divisão sexual do trabalho fundada nos papeis complementares de gênero (homens “provedores” e mulheres “cuidadoras”) e entra-se na era da “conciliação” e da “delegação” (Hirata & Kergoat, 2007), onde caberá à mulher conciliar as inúmeras demandas de sua vida familiar e profissional delegando a outras mulheres, pobres e menos formadas que ela, (empregadas domésticas e babás) o cuidado com a casa e os filhos. De onde resultará sentimento de culpa, cansaço e frustração.

De todo modo, no imaginário, homens continuam a valorizarem-se como provedores. E mulheres continuam a ansiar por homens provedores, ainda que em nível inconsciente.

Força e masculinidade

 A exibição da força física acompanhada ou não de agressão é um dos atributos “masculinos” mais importantes para um homem.

Força física e instinto de agressão significando, para o homem, símbolo de poder e de domínio sobre o outro. Motivo pelo qual ele despreza a “fraqueza” vinda de outro homem, embora a aceite, e até a estimule, na mulher.

São manifestações de força para ele: destemor, independência e atividade. Sendo fraqueza: covardia, dependência e passividade. Sentidos que decorrem do modo como o ser homem e sua ficção de autofeitura são valorizados na cultura.

Daí ser o pânico do fracasso que acompanha muitos homens resultado das expectativas idealizadas que ele tem de si mesmo. E que aprendeu a alimentar com os outros.

Algo como se a dita fraqueza masculina adviesse do seu excesso de amor por si próprio. Condição que é reforçada nele se é branco, burguês e “bem-sucedido”. E frustrada, se é pobre e, portanto, dominado por outro homem.

Indaga-se neste sentido até que ponto tal “fraqueza” deve-se ao fato de a cultura escamotear no homem e para o homem sua condição universal de desamparo (Freud, 1950 [1895]/1996). E de reforçar sua onipotência psíquica. Deixando-o pior preparado para lidar com as adversidades inevitáveis da vida.

Resta também indagar o fato extraordinário de muitas vezes ser uma mulher, na figura da mãe, a primeira a inflar no filho sua onipotência viril.

Situação que a inveja do pênis, e o inveterado desejo materno pelo falo, evidenciam, mas não explicam. Já que é pela criação dos filhos que primeiro se reproduz ou se transmitem, em nível inconsciente, os ideais de gênero.

Voltando aos atributos da “força” masculina, o que eles revelam é uma profunda crise moral deflagrada pela ruptura do sistema simbólico patriarcal (Roudinesco, 2003), a ser ressignificada pelo homem moderno.

Um dos aspectos desta crise é que o uso da força vem cedendo espaço ao uso da palavra nas sociedades democráticas contemporâneas, o que pode explicar o estado de ameaça que muitos homens experimentam na atualidade. Ameaça que pode se converter em violência física nos casos mais graves. Embora nada justifique isso.

O aspecto positivo desta transformação social em curso é os homens contemporâneos, sobretudo os mais jovens, poderem crescer sem a tirania do ideal da força como atributo de masculinidade. Que, como se viu aqui, significa manutenção por domínio e privilégios, e nada mais.

Esperamos ter demonstrado que a pronta adesão aos estereótipos de gênero masculino causa enorme sofrimento aos homens. Não só às mulheres.

E que a escuta precisa deles, na clínica psicanalítica e na cultura estendida, pode favorecer novas tomadas de consciência. Primeiro passo para quaisquer transformações significativas, na cultura e nos sujeitos que nela vivem.

Referências bibliográficas

BATAILLE, Georges (1987). O erotismo. Porto Alegre: L&PM.

CORRÊA, Mariza. A babá de Freud e outras babás. Cadernos Pagu, n. 29, p. 61-90, julho-dezembro de 2007.

DIO BLEICHMAR, Emilce. (1988). O feminismo espontâneo da histeria: estudo dos transtornos narcisistas da feminilidade. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.

FREUD, Sigmund. (1950[1895]).  Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. I p. 347-400.

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FREUD, Sigmund. (1910). Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (Contribuições à psicologia do amor I). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XI, p. 167-180.

FREUD, Sigmund. (1912).  Sobre a tendência à depreciação na esfera do amor (Contribuições à psicologia do amor II). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XI, p. 181-196.

FREUD, Sigmund. (1913[1912-13]).  Totem e tabu. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XIII, p. 13-168.

FONSECA, Cláudia.  (2000). Família, Fofoca e Honra. UFRGS Editora: Porto Alegre.

FOUCAULT, Michel. (1977/1979). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal.

ELIAS, Norbert. (1994/1996). O processo civilizador. Volumes 01 e 02. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

HIRATA, Helena & KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, volume 37, n. 132, p. 595-609,  Dec.  2007 .  Disponível em:  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010015742007000300005&lng=en&nrm=iso. Acessado em 09  Dec.  2020.

ROUDINESCO, Elisabeth. (2003). A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

WOOLF, Virginia. (1928). Um teto todo seu. Círculo do Livro S/A: São Paulo.

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