O filme da diretora Ana Luiza Azevedo (2020) é um convite para enxergar a vida pelos olhos de Ernesto. Um homem na faixa dos setenta anos, parcialmente cego.
Além de fotógrafo sensível, ex-militante e exilado político que teve que deixar sua terra natal, o Uruguai, por causa da ditatura.
Retrata a luta de Ernesto por manter-se autônomo, apesar das horrendas limitações da velhice, piorada pela cegueira.
Autonomia interior vivida em sua paixão pelos livros, pelas músicas e pelas memórias de luta na juventude, compartilhadas com a amiga e antiga namorada Lucía, com quem troca cartas.
O gabinete de leitura, que tranca a chaves, representando nesse aspecto aquilo que de mais sagrado existe para ele: conhecimento, privacidade e autonomia. Experiências cada vez mais ameaçadas com sua degenerescência física.
O filho, por amor ou por desconhecer a natureza indômita do pai, quer levá-lo para morar com ele; algo de que Ernesto se horroriza. Não quer “depositar sobre os ombros do filho o fardo de sua velhice”.
Lembra neste aspecto a tradição dos orgulhosos e autossuficientes povos esquimós onde os velhos iam morrer sozinhos nas montanhas quando já não eram mais úteis à comunidade.
O contraponto dele é Javier: seu velho vizinho que, perdendo a esposa, não suporta a solidão e vai morar com a filha. Dois modelos de velhice distintos. O de Ernesto talvez carecendo de uma força interior muito maior, que nem todos tenham. Talvez uma pequena minoria.
Ter vivido intensamente a vida e cultivado um mundo interior rico, como é o caso de Ernesto, parecendo ser crucial para esta vida interior forte. Que se traduz em temer menos a solidão e a morte, nos anos finais de vida. O que não exclui o horror de uma velhice incapacitante e de uma morte dolorosa e solitária.
Por afinidade, Ernesto se liga à Bia, uma jovem de vinte e três anos, cuidadora de cães, com quem estabelece uma bonita relação de enriquecimento mútuo.
Ele dá a ela estabilidade, cama e comida. Ela o ensina a mexer no celular e a não ser tão formal. Lê e escreve as cartas à Lucía para ele, estimulando-o a retomar a paixão interrompida no passado. Para ambos, a vida devendo ser vivida com paixão até enquanto se está vivo.
Extraem esta paixão compartilhada pela vida da língua, das letras e dos livros que amam. Ela o leva a uma roda de poesia, onde ele declama lindamente um poema do poeta e ensaísta uruguaio Mario Benedetti, intitulado Porque cantamos?.
Ora, encontrar afinidades é uma sorte. Não podia ser Bia sua filha?
Mas de outro lado a filiação é um peso. E Bia se assusta ao perceber o desejo de Ernesto.
Só que ele é um homem excepcional e não quer ser infantilizado, como os velhos costumam ser, sobretudo pelos familiares.
Quer continuar adulto e preservar sua dignidade até o fim. Isso não significando nem falta de amor à família, nem misantropia.
Por isso, Ernesto, em ato de profunda coragem, despede-se em carta do filho, deixa o apartamento para Bia e parte para viver o último capítulo de sua vida.
Retorna à cidade natal para viver (e morrer) na companhia de Lucía.
Motivam-lhe o fato de não querer ser um peso para o filho mas também o desejo de experimentar amizade e afeto numa relação de iguais. Como é a que se vive entre marido e mulher. Algo que os filhos não podem oferecer.