Um olhar sobre a injustiça social

Para Freud (1930), não há civilização sem justiça social, sendo aquela compreendida como o conjunto de sanções que a protege contra a ganância e voracidade do indivíduo.

 

Daí ser justo o Estado que limita o poder dos poderosos e auxilia os desprivilegiados a se reerguerem, o avesso da situação em que os ricos são privilegiados em detrimento dos pobres. Realidade crônica no Brasil, que a pandemia só fez ressaltar. Restando-nos indagar o porquê isso ocorre.

Pobreza como destino 

Culpabiliza-se o destino do pobre por argumento ideológico, a saber, por sua pretensa “natureza” preguiçosa e indolente.

Natureza pretensamente muito diferente da dos homens “esforçados e de bem”, do lado do qual os vitoriosos e bem-sucedidos se colocam. Tal ideia explica-se pela visão capitalista para quem homem de sucesso é aquele que produz bastante e acumula patrimônio.

Nesse aspecto, a caricatura do pobre representando tudo aquilo que o homem de sucesso mais abomina e despreza, com sua preguiça, falta de ambição e espírito servil.

Ambição e ganância

Aqui, a ambição por dinheiro, poder e status revela sua face mais monstruosa na voracidade desenfreada e sem limites, agora aceita e tornada banal.

Em nome dela, faz-se qualquer negócio. Desde corromper o sistema político a seu favor, roubando comida e escola dos pobres, à ludibriar pessoas com discursos mentirosos. Sem nunca se satisfazer com os ganhos.

A premissa cínica de que todo homem tem um preço, basta saber qual, destrói a necessária crença em um Ideal, a saber, de que há homens e mulheres imunes ao pecado escandaloso da ganância sórdida. Nesse aspecto, Ideal não sendo algo inatingível, mas qualidade rara e superior à grande massa de miséria humana.

O argumento falacioso de que se todos fazem, porque não fazer, pode ser refutado pela ideia de que se deve mirar nos melhores e não nos iguais ou piores que si.

Enquanto isso, a classe média trabalhadora (Mills, 1979) segue confusa, julgando-se muito mais rica do que de fato é, a mostrar  que ninguém está imune ao espírito de soberba.

Tal confusão obstaculiza uma visão mais clara do real problema da desigualdade social, já que, no Brasil, apenas 0,1% da população brasileira acumula 30% do PIB nacional (Cavalcante, 2020). O que significa que não são muitos os multimilionários.

Educar bilionários, ricos e classe média para a prática da solidariedade e conscientizar empresários à boas práticas sociais (vagas para negros, estímulo ao empreendedorismo já existente nas favelas, etc.) são parte da solução coletiva para a erradicação da miséria no longo prazo.

Vejamos agora o tratamento desigual de acordo com a classe social.

Tratamento diverso de acordo com a classe

Weber (1974) designou classe como número de pessoas que comungam, em suas oportunidades de vida, de contingências parecidas ou iguais.

A contingência mais controlável para se subir de classe social é a educação, sendo as outras: o trabalho árduo, o talento, a corrupção e a sorte. Ainda que só o trabalho árduo, sem educação, sorte ou talento, não enriqueça ninguém, sendo este um dos grandes engodos do capitalismo.

Já a educação é propulsora interessante por outros aspectos. Primeiro, porque (a depender de como é feita) desaliena e gera autoestima. E segundo, por ser fonte de status e prestígio social, principalmente em algumas profissões.  Daí ter um filho “doutor” na família continuar a ser o sonho de muitos.

Na contramão disso, jovens pobres evadem cedo das escolas, por estas não serem atrativas, e por terem de trabalhar cedo. O que diminui suas chances de mobilidade social.

De outro lado, pela dureza da vida, desenvolvem habilidades de sobrevivência valiosas, que jovem ricos não possuem. Tornando-se com isso pequenos empreendedores de sucesso, ativistas sociais, youtubers e rappers talentosos. Sendo ainda outras saídas da pobreza, o sonho de tornar-se um craque do futebol ou a carreira no crime.

Dinheiro e poder

Trata-se melhor o rico que o pobre porque dinheiro traz poder. Nesse aspecto, ricos sendo muito mais poderosos e influentes que pobres. Sobretudo na política onde o rico influencia a feitura de leis e acordos que beneficiam seus negócios em troca de pagamentos e/ou vantagens aos políticos.

Tal círculo vicioso entre poder e política gera injustiça social porque mantém a classe política desinteressada em proteger os interesses dos mais pobres, já que estes não têm nada de valor a lhes oferecer, exceto votos.

A levar-se em conta que política e poder são inextrincáveis, sendo utópico o interesse do político aos miseráveis, apresenta-se como saída possível que empresários  estimulem e invistam no enorme potencial consumidor e empreendedor dos mais pobres, em troca de algum lucro. O que curiosamente faz pensar que é pelo capitalismo consciente que se sai da miséria.

Compaixão e solidariedade 

Demonstra a realidade que qualidades humanas como compaixão e solidariedade tendem a ser mais encontrada entre os pobres que entre os muito ricos. Embora haja exceções quanto a isso.

Sendo um dos motivos para isso que a falta de proteção do Estado força-os a criarem redes de ajuda mútua (Fonseca, 2000), possibilitando entre eles a criação de um elevado senso de comunidade.

Outro, é que a dureza da vida força à humildade e à aceitação da ajuda dos outros para sobreviver, e, portanto, à gratidão.

Experiência que os mais ricos não têm por não saberem o que é fome, nem desemprego crônico, nem moradia em barracos, nem falta de escola para os filhos.

A solidariedade entre os mais humildes pode significar vizinhos intervirem no homem que, bêbado, espanca mulher e filhos. Ou em mulheres que cuidam dos filhos das vizinhas para que se possa trabalhar. O que não tende a ocorrer nos bairros de elite onde o senso de propriedade, o individualismo e a alta moralidade tendem a operar.

A rígida moral que tende a reger as famílias mais ricas, por exemplo, torna necessário esconder e não compartilhar os problemas psíquicos que acometem seus membros (alcoolismo, abuso físico e sexual, etc.). O que faz os pobres parecerem mais desestruturados e problemáticos que os ricos, por falarem e se exporem mais.

Outra diferença é que distúrbios psíquicos, nos ricos, serão casos psiquiátricos e nos pobres, caso policiais graças à brutal criminalização que se faz dos mais pobres.

A maior severidade moral com que se julga o pobre em detrimento do rico pode explicar o medo consciente ou inconsciente deste, de vir a empobrecer.

Assim, a bancarrota de uma família rica não tenderá a despertar solidariedade entre os vizinhos, mas desejo de pechincha dos bens perdidos a preços irrisórios. É o famoso “bom negócio”, que se traduz na desvalorização de um bem ou serviço alheio com o propósito sórdido de lucrar.

Os que caem de nível social passarão agora para “o outro lado”, podendo ser tolerados com piedade no círculo social antigo ou paulatinamente recusados nos eventos sociais. Daí ser a perda da riqueza pesadelo inconfesso de todo rico.

Mas não é só o rico que teme empobrecer. O pobre também sonha enriquecer. Ou pelo menos conquistar alguns privilégios no mundo dos privilegiados.

Assim, o porteiro de um condomínio de luxo tenderá a bajular os moradores na esperança de melhorar de nível, destacar-se entre os colegas ou ganhar boas gorjetas. Daí ser elitista e ingênua a ideia do pobre como subserviente (Fonseca, 2000).

De outro lado, a imagem do pobre como alguém tolo, pueril e coitado motiva o assistencialismo dirigido a ele. É a mulher rica que faz bazares beneficentes para livrar-se do tédio da própria vida e sentir-se em paz com a consciência.

Injustiça e insegurança social

A caricatura do pobre pelo rico, ora como esperto ora como coitado, explica também o sentimento permanente de ameaça social que há nos últimos quanto aos primeiros.

E que aparece como medo de ser furtado, enganado, sequestrado ou morto por um pobre, sobretudo, se este for homem, jovem e negro. Daí ser a insegurança pública de um povo expressão direta de sua desigualdade e abandono social dos menos favorecidos. Pois, dignidade toma-se por bem ou por mal.

Assim, em casas ricas a culpa pelo sumiço de algum pertence ou valor quase sempre recairá sobre as empregadas, cozinheiras, babás, motoristas, jardineiros e piscineiros. Por vezes denunciados à polícia sem provas.

Os quais, caindo no sistema de justiça, tenderão a ser mais severamente julgados. Primeiro, pela falta de acesso a bons advogados. Segundo porque juízes, sobretudo se nascidos ricos, tenderão a replicar seus preconceitos de classe em seus julgamentos.

No avesso disso, têm-se a maternagem e erotismo ameaçando a rígida estrutura de classes.

Com crianças pequenas amando suas babás e empregadas domésticas como se fossem mães.

E adolescentes, tendo-as como suas primeiras e vigorosas amantes. O que aponta para o caráter extraordinariamente anárquico e não convencional da sexualidade e dos afetos humanos.  Avesso à quaisquer convenções e distinções artificiais entre os homens por sua cor ou nível social.

Considerações finais

Esperamos ter demonstrado que a injustiça social aos mais pobres perpetua-se pela associação naturalizada entre dinheiro e poder, culminando em descaso e abandono das elites econômicas e políticas para com eles.  Descaso que corrói e erode gravemente o tecido social.

Conscientizar-se de que ser privilegiado é mais sorte que mérito (bastaria nascer-se em uma favela para saber disso) podendo ser uma saída modesta contra a soberba desmedida.

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cavalcante, Pedro (2020). A questão da desigualdade no Brasil: como estamos, como a população pensa e o que precisamos fazer. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10263/1/td_2593.pdf

Freud, S. (1930/1996). Mal-estar na civilização. In: Obras psicológicas completas. v XXI, pp. 67-150.

Fonseca, Cláudia.  (2000). Família, Fofoca e Honra. UFRGS Editora: Porto Alegre.

Mills, Charles Wright (1979). A nova classe média. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

Weber, Max. (1905/2004). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.

 

Um comentário em “Um olhar sobre a injustiça social”

  1. A ilusão da classe média ,

    Para brisar sobre este assunto precisamos falar sobre a hegemonia da elite e por que essa tal da classe média é a que mais se ilude com o sistema capitalista.
    Será que alguém pensou assim ; Vamos criar uma nova camada nessa hierarquia de classes ?
    De qualquer forma acompanhe a minha brisa , porquê essa é uma estratégia muito bem sucedida para que o sistema não caia !!!!!
    Sinceramente !!! todo mundo tem a mesma chance de alcançar poder e sucesso neste sistema ? E como as pessoas da classe média tem um pavor de serem comparadas às pessoas das classes mais pobres a elite trabalha muito bem esse medo na psiquê destas pessoas , criou se uma estratégia para defender os interesses da elite e que iluda a classe média em acreditar que faz parte da elite ou que um dia fará.
    A classe média é apenas um grupo de pessoas da classe trabalhadora que a elite convenceu olhar com superioridade para a própria classe trabalhadora e é assim que funciona o sistema, utilizando ferramentas como o antagonismo dentro da dicotomia.
    Até para uma consciência de classe poderíamos também chamar a classe média de Pobre Plus , Proletário Prime ou quem sabe até Pobre Gold.
    (Autor desconhecido)

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