Para quê serve mesmo a Universidade?

Gostaria de compartilhar com vocês a minha alegria ao perceber, participando do evento ocorrido em Ribeirão Preto no dia 26 de maio sobre Psicanálise e Universidade, que não estou sozinha em minhas angústias e reflexões sobre os caminhos que o ensino superior tem tomado no nosso país.

Leciono no Ensino Superior há mais ou menos seis anos. Além disso, experimentei a universidade como aluna durante onze anos da minha vida (cinco de graduação, dois de mestrado e quatro de doutorado).

E foi com grande alívio que ouvi a instigante e provocativa fala do psicanalista Cláudio Eizirik (SPPA/UFRGS) que abriu o nosso dia de trabalho. Vou buscar reproduzir algumas das suas ideias…

Os hereges do conhecimento:

Cláudio começou a mesa apresentando-nos uma interessante retrospectiva histórica do surgimento das primeiras universidades europeias, chamando a atenção para o fato de que, se as primeiras universidades (Universidade da Bolonha, criada em 1150 e Universidade de Pari, criada em 1214) eram dominadas pela Igreja, logo elas passaram a ser reduto dos hereges, ou seja, daqueles que “queriam saber demais”, algo que certamente se contrapunha às imposições doutrinárias das religiões. Desta forma, as Universidades retratavam o nascimento do iluminismo e a busca do homem para conhecer o mundo e a si mesmo através da razão. Tratava-se, portanto, do espaço do questionamento e, por isso, da heresia.

Pensamento crítico ou manutenção da “burrice”?

Ocorre que, segundo ele, atualmente não só as Universidades, mas a cultura em geral está vivendo uma espécie de guerra entre o pensamento crítico e a “manutenção da burrice”. Para ele, tem sido cada vez mais difícil a manutenção de espaços, dentro e fora dos muros das Universidades, críticos e questionadores.

E é aí que entra a Psicanálise. Para Cláudio, apesar de Freud ter mantido uma relação ambivalente e até ressentida com a Universidade (ele lembrou que Freud nunca teve uma cadeira cativa para ensinar Psicanálise na Universidade), a ciência psicanalítica, quando ensinada aos jovens e futuros médicos, pode ser uma saída possível contra o emburrecimento e embrutecimento das relações humanas. Em sua experiência, os jovens alunos residentes em psiquiatria “têm fome de pelo psíquico”. Portanto, ele chama a atenção, os docentes têm uma função crucial na formação humanista destes jovens.

Para trazer um exemplo específico do que ele trata em sua fala: há quem argumente que o ensino das psicopatologias tem que ser a-teórico, ou seja, baseado única e exclusivamente em uma visão diagnóstica. Entretanto, para Cláudio, isso é um engodo porque esta visão diagnóstica presente, por exemplo, no DSM não é a-teórica. Ao contrário, ela está assentada exatamente no paradigma da fragmentação e da coisificação do homem quando pretende “encaixotar” a complexidade dos seres humanos em diagnósticos.

Vejam bem, a questão não é banir os diagnósticos psiquiátricos porque alguma compreensão diagnóstica é necessária. A questão que ele coloca é mais complexa: até que ponto o diagnóstico passa a ser mais importante que a própria pessoa, com sua história de vida e subjetividade?

Vale ressaltar que a prática mecanicista e robotizada da Medicina tem sido ao que me parece, uma constante na atualidade, seja pela explosão do número de convênios que pagam mal a seus médicos, seja pela má formação acadêmica de nossos alunos. Vocês já viveram a terrível experiência de irem a um médico de convênio e se sentirem completamente invisíveis?

Fome pelo psíquico:

Eu, como docente das disciplinas ligadas à Psicanálise em um curso de Graduação de Psicologia, tenho a mesma percepção que Cláudio sobre a “fome dos alunos pelo psíquico”. É incrível como os meus alunos se interessam pela Psicanálise desde seus primeiros contatos com as teorias de personalidade provavelmente porquê vêem nesta disciplina alguma possibilidade de viver criativo e de expansão de suas percepções de si mesmo e do mundo.

Mal-estar social:

Por outro lado, na realidade quotidiana de nossas instituições de ensino, observo que há uma espécie de força oculta (derivadas obviamente do inconsciente, mais propriamente da pulsão de morte) que nos impulsiona para o fazer repetitivo, compulsivo e pouco reflexivo. Com isso, todos adoecem pela impossibilidade de manterem a capacidade de pensar genuína e verdadeira, única forma de pensamento que leva à expansão mental.

Não acho que este seja um movimento exclusivo das  Universidades. Ao contrário, acho que nossas instituições de ensino tão somente tem sido reflexo de um modo de funcionamento social e cultural global, típico da nossa época, e que está intimamente ligado ao lugar pouco privilegiado que a mente, os sentimentos e a subjetividade têm ocupado em nossa sociedade como um todo.

Como diz Bauman, vivemos na cultura do espetáculo e da infantilização das relações. Portanto, ficam aqui algumas questões para serem discutidas:

1) Como a Psicanálise pode ser aplicada enquanto forma de compreensão do sofrimento humano em instituições sociais que transcendem o consultório?

2) É possível resgatarmos a identidade herege das Universidades ou o que estamos reproduzindo nelas é a apatia e o culto ao emburrecimento?

Não tenho respostas para todos estes questionamentos, mas arrisco dizer que, em se tratando da primeira questão, tenho pensado cada vez mais que a entrada da Psicanálise nas Universidades, para que seja mais efetiva, tem que se dar de uma maneira que eu chamaria de “clandestina” (não sei se esta é a melhor palavra, mas a usei no sentido de uma entrada furtiva, “comendo pelas beiradas”). O que quero dizer com isso? Acho que a forma de estar no mundo que a Psicanálise propõe, além de ser ensinada em termos teóricos aos nossos alunos, pode ser transmitida muito mais como um modelo de “funcionar na vida” – modelo que dependerá da personalidade e da conduta daqueles que a apresentam e a representam na instituição.

Um silêncio, um espaço que parece “vazio”, um não sei…formas que possam provocar algum estranhamento e quem sabe fazer nascer a curiosidade e a criatividade legítima. Pois, para que nasça algo novo, é necessária algum dor, alguma frustração…

Os desafios são muitos e isso é inegável. Mas, penso que quem se propõe a esta difícil, mas também fascinante tarefa de ajudar os mais jovens nos desafios de se tornarem verdadeiramente adultos (no amplo sentido do termo), não poderá se furtar a esta discussão. Caso contrário, correrá o risco de também sucumbir neste grande buraco negro da repetição alienante.

2 comentários em “Para quê serve mesmo a Universidade?”

  1. Olá Ana Laura,

    Ótimo seu texto, adoro quando coloca suas reflexões no site com aspectos do cotidianos relacionando-os com a psicanálise, pois isso me ajuda muito a entender melhor como ela funciona.

    Parabéns!

    Amanda

    1. Oi Amanda. Que bom que gostou! Fique à vontade para fazer mais comentários sobre o texto. Abraços.

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