Um príncipe em crise: o homem por trás do mito em um episódio de The Crown.

* O artigo está sendo republicado em homenagem à morte do príncipe Philip, em 09 de abril de 2021.

No episódio “Poeira Lunar” da nova temporada de The Crown, o príncipe Philip, marido da rainha Elizabeth, deprime. Sem que se dê conta, vai ficando desanimado e insatisfeito com sua vida quotidiana, queixoso e entediado.

Ocorre que, de repente, Philip começou a duvidar do valor de tudo aquilo que vinha sendo e fazendo. Seu modo de viver organizado, responsável e estável passou a não ter mais valor aos seus olhos. E tudo o que antes lhe dava prazer em fazer deixou de dar.

No âmbito de suas responsabilidades como príncipe, começou a colocar em xeque o valor das tarefas burocráticas e administrativas que realizava com êxito para ajudar sua esposa, a rainha.

Vivendo uma espécie de “crise do macho alfa”, agravada pelo envelhecimento, Philip se ressente por se sentir à sombra. Com isso, perde a motivação e o sentido em continuar vivo. Em suma, perde a fé.

Neste estado frágil, começa a pensar que seria realizando algum feito significativo que poderia recuperar o sentido das coisas. Sua tese é que agindo no mundo é que o homem recupera a fé.

E é por um acaso que encontra os personagens perfeitos em quem mirar seus anseios insatisfeitos de realização.

Trata-se dos três astronautas norte-americanos que haviam acabado de pisar pela primeira vez em solo lunar. Assim, de repente, eles se tornam o ideal de eu de Philip.

Neles, o príncipe projeta todos os seus anseios não atendidos pela realidade. Desejo de liberdade e de aventura, de uma vida emocionante e de autoafirmação; tudo isso se torna, para ele, o pote de ouro atrás do arco-íris.

Mas Philip era um homem esperto e sensível. Além disso, tinha a seu favor uma subjetividade construída na solidez não metafísica da tradição inglesa. Por isso, não tardará a se desfazer da ilusão. E para isso bastará um encontro presencial.

Mas antes disso, é comovente ver como o príncipe se prepara para o encontro com seus mitos. Na verdade, o que ele quer saber é se estes três rapazes encontraram respostas satisfatórias sobre o sentido da vida quando avistaram, da Lua, o nosso lindo planeta azul.

No encontro ele não demora a perceber que nenhuma reflexão existencial foi feita por eles. Na verdade, nota que estes jovens são bastante tolos e medianos e se irrita por eles terem desperdiçado a chance de evoluírem com esta experiência única.

Para um psicanalista, pode ficar evidente que os astronautas se defenderam da experiência estética com manobras obsessivas. Ao serem indagados sobre o que aprenderam com a experiência respondem de modo pobre que estavam tão cansados e tinham tantos protocolos a seguir que não puderam pensar em nada.

Philip fica com raiva. Provavelmente pensa que reflexões maravilhosas ele próprio poderia ter feito se tivesse sido tido a chance de ir à Lua, com sua maturidade e capacidade de pensamento profundo.

E é neste momento, em que se compara com os seus mitos, de perto tão ordinários, que eu tenho a impressão que ele volta a sentir amor e respeito por si mesmo. E assim encontra a porta de saída para sua crise.

Talvez ele tenha se dado conta naquele instante que ter uma personalidade profunda e não superficial é uma grande sorte na vida. E que seria uma grande tolice se comparar e invejar a vida de outras pessoas, sobretudo daquelas que ainda têm ainda tanto a aprender.

Podemos pensar que Philip e os astronautas representam dois estados de mente potenciais em nós, embora qualitativamente muito distintos entre si; o primeiro representando a experiência da interioridade e os segundos da exterioridade.

No primeiro, filiado a uma tradição filosófica socrática, o sentido da existência encontra-se na verdade introspectiva a ser buscada dentro do próprio homem, algo que no filme é representado, por exemplo, pelo esforço filosófico e espiritual dos padres de olharem para dentro de si mesmos.

No segundo, é a experiência que excita os sentidos e as trocas imediatas que imprimem significado à vida, sendo a identidade do sujeito designada pelo olhar de um outro indiferenciado e movido a paixões voláteis. Um exemplo disso no filme é a relação dos astronautas com seus fãs (fã = fanático).

Trata-se de dois ethos que entraram em choque com a paulatina modernização do mundo onde se deu a passagem da aristocracia ao capitalismo burguês, da tradição à inovação, do discurso religioso ao científico, e onde valores como transmissão e ordem foram sendo substituídos pelo foco na experiência e na autonomia.

Nesse sentido, seria muito interessante pensar se e em que medida o homem é capaz de desenvolver um senso de interioridade quando ele próprio passa a ser a medida de todas as coisas, posição que obviamente dificulta o colocar-se em perspectiva.

Outro aspecto é até que ponto a hipertrofia do pensamento, decorrência direta da supremacia de Descartes no mundo moderno, tem contribuído ou atrapalhado o contato do homem consigo mesmo, algo que a clínica com obsessivos e a febre do “autoconhecimento”  dos tempos atuais nos leva a problematizar.

E se é verdade que o homem se empobrece se perde contato consigo mesmo, fica a questão de saber por onde e de forma, nos tempos atuais, este contato poderá ser retomado. Acreditamos que a psicanálise caminha no sentido desta restauração.

Há ou haverá ainda lugar no mundo para um homem como Philip? Ou estará ele fadado à extinção? Para um jovem empreendedor da bolsa de valores, Philip talvez será um homem fraco e submisso, frustrado em suas realizações pessoais.

Cogitará se não seria melhor ele se divorciar da rainha para fazer “carreira solo” de modo que ela não o ofusque mais.

E isso porque o valor deste novo homem estará todo em seus projetos pessoais, que ele acredita ilusoriamente ter conseguido sem o auxílio de ninguém.

Encontramos então a tendência cada vez maior de mitificação do próprio homem, do homem tornado o ideal de si mesmo, o que explica sua vida ser vivida agora predominantemente na exterioridade.

Assim, penso que é o predomínio da vida em exterioridade do homem contemporâneo uma das grandes fontes de seu tédio.

Entretanto, não se trata de adotarmos uma atitude pessimista ou nostálgica frente ao nosso tempo.

Trata-se de refletir de que modos poderemos reconstruir nosso seu senso de interioridade em meio a uma crise moral sem precedentes.

Como reflexão, eu apontaria que as recentes preocupações climáticas bem como o anseio pelo retorno a um modo de vida mais natural que temos visto em muitos movimentos atuais, pode significar uma tentativa de reencontro consigo mesmo.

De qualquer modo, o eco da voz de Philip, a indicar que as respostas para as inquietações humanas estão dentro do próprio homem continuará a nos inspirar porque são belas e verdadeiras.

4 comentários em “Um príncipe em crise: o homem por trás do mito em um episódio de The Crown.”

  1. Estou em uma situação que me fez sentir que este trecho “E é neste momento, em que se compara com os seus mitos, de perto tão ordinários, que eu tenho a impressão que ele volta a sentir amor e respeito por si mesmo.” foi feito para mim (risos). Sou jovem e relativamente ”profundo”, no sentido utilizado pelo seu texto, e não por isso exatamente, mas sempre fui excluído socialmente, porém recentemente tenho iniciado uma ”jornada” para uma mudança nesse aspecto, pesquisado e até me inspirado em algumas pessoas que são mais bem sucedidas do que eu nessa área mas é interessante para mim o quão tristes ou vazias elas aparentam ser.
    Deixo a admiração e apreço pela análise, parabéns!

    PS: Estou fortemente atacado por essa busca de retorno a um modo de vida mais natural.

    1. Lucas, gostei muito dos seus comentários. É isso que me motiva a continuar escrevendo! Obrigada mesmo. Abraços.

  2. Por uma desses conhecidências da vida, que ñ tem muita explicação, justamente ontem eu assisiti a este episodio da série e que me tocou muito, e hj qdo abri o google para fazer uma pesquisa sobre o episodio, como eu sempre faço, me deparei com a triste noticia da sua morte, como é dificil assimilar a idéia de que 100 anos de história vão com ele… enfim qto a minha pesquisa, esse site trouxe tudo o q eu precisa ler hj, parabéns pelo belo texto.

  3. Ana Laura,

    Obrigada por esta análise. Que alívio me deu encontrar esse texto depois de ter assistido o episódio. Precisava de mais explicações, mais compreensão e interpretação. A crise do macho alfa na meia idade não é privilégio só do príncipe, muito menos em tempos pandêmicos. Obrigada

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